Kashan, um oásis às portas do deserto

Não tem a aura de Isfahan ou de Shiraz. Nem o eco pré-islâmico de Persépolis, apesar do volume arqueológico do mais antigo zigurate do mundo. Mas Kashan, aspirante a figurar na lista da UNESCO, é uma das mais singulares cidades históricas do Irão, graças ao seu património de casas oitocentistas.

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"Ali Baba" - apresenta-se. E bate várias vezes com a mão no peito, fazendo ecoar um som cavo, fundo, coisa de entranhas falando. A seguir, mirando-se no espelho do pára-brisas, põe-se a alisar teatralmente o copioso bigode que ajuda ao ar pantomineiro e bonacheirão. Arregala uns enormes olhos sorridentes para o passageiro e repete "Ali Baba!", soltando uma gargalhada mais sonora do que o trânsito que anda às voltas da praça Kamal Almolk.

Não é nada do outro mundo tropeçar no Irão com um taxista bem disposto e palrador. Este Ali Baba é um tipo truculento e mil e uma vezes grato pela presença do estrangeiro. O homem desata em aleluias: "Turist gude! Tank you turist!" E volta a bater no peito, com um crescente entusiasmo que o desembaraça de convenções. "Iran gude? Iran gude?", pergunta. Não espera pela resposta: "Iran gude! Portagal gude! Tank you turist". Para que não haja dúvidas, solta o volante do velho Paikan e aperta-me com força a bochecha que está mais à mão. E repete, uma vez mais, com embriagado ênfase: "Turist gude! Tank you, turist. Tank you!"

Aos iranianos parece importar sobremaneira o que pensa o viajante sobre o país e a sua gente. O forasteiro é um enviado de Deus, tal como rezam versos da tradição corânica e, porventura, preceitos da hospitalidade persa. Mas os iranianos sabem da imagem que no Ocidente é alimentada por uma narrativa que lhes torce a reputação e trai a condição de gente incomensuravelmente amável. Mais ainda aqui se cronica, em favor da luz que deve fazer-se sobre os costumes de tais distantes paragens: esses descendentes da velha Pérsia são de grande afabilidade na fala, de espontânea delicadeza no trato e esmeram-se amiúde em cuidados que transcendem as convenções da hospitalidade. Talvez por se saberem injustiçados se ponham com semelhantes exageros? Talvez. Mas o forasteiro, comovido a leste com tais tratos de realeza, desabituado de genuíno carinho humano que não seja o comercialmente negociado no impudente mercado do turismo, e não se lembrando de alguma vez ter feito algo memorável e heróico em benefício da gente iraniana, dá consigo a matutar se será mesmo merecedor de tamanha exaltação. Não é, bem visto o filme, nada de pessoal. Todos os estrangeiros são com ela agraciados.

Não muito longe da Babilónia

A corrida da táxi da praça Kamal Almolk até ao zigurate de Tepe Sialk durou vinte minutos e custou dez mil toman, uns sessenta cêntimos de euro. No Irão, o preço da gasolina é irrisório - um dólar compra cerca de quinze litros -, mas as sanções norte-americanas estão a asfixiar a economia e a moeda local, o riel, sofreu uma desvalorização para um quinto do seu valor há menos de um ano, provocando uma inflação bola de neve no preço das mercadorias importadas e de muitos outros bens de primeira necessidade, incluindo medicamentos. Passei vinte mil toman para as mãos de Ali-Baba, mas ele inclinou a cabeça, levou a mão direita ao peito e recusou a gorjeta com um ar seriíssimo." "Mamnoon" - e foi como se dissesse "sou apenas um taxista, não um banqueiro à cata de fortuna".

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Casa Tabatabaei

A memória não gira de forma linear. A ciência e os seus oficiantes esgrimem argumentos, mas os mistérios protegem-se. E a lógica das associações também lavra as suas fintas, trocando as voltas ao espaço e ao tempo. Quão longe - ou perto - estaremos aqui, em Tepe Sialk, de Tulum, as ruínas maias de pirâmides centenárias? E das margens do Tigre e do Eufrates, da Babilónia, da linhagem de confusas coisas antigas a que devemos uma parte do que somos?

Sim, estamos mais perto da Babilónia, de Ur e de Bagdad, uns quinhentos quilómetros a direito, caminho que os ziguezagues da memória desprezam. Na Babilónia ergueram-se zigurates que se tornararam famosos, como o de Ur, mas também na Pérsia, mais tarde: o de Chogha Zanbil, na província iraniana do Guzestan, é um edifício jovem - data de mil anos a.C - e forma com o Sialk, o grande zigurate de Ur e o de Aqar Qufe, a sul de Bagdad, uma espécie de quarteto glorioso de antepassados das pirâmides.

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O Tepe Sialk está bem mais roído pelo tempo, de rosto mais circunspecto e cansado, tanto foi o vaivém de impérios naqueles arrabaldes que vão das montanhas afegãs, através do reino pré-iraniano de Susa e da Mesopotâmia, até às areias do deserto sírio. O nível mais antigo do Sialk data de 3000 a.C - tem, portanto, mais de cinco mil anos, o que lhe garante o título de mais antigo zigurate do mundo. Tudo isto, e o silêncio solar que abrasa o flanco norte, basta para tornar impressiva a visita. A refinada olaria e a cerâmica, decoradas com figuras geométricas ou da fauna local, foram desviadas para outras paragens, tal como aconteceu com o mihrab da mais antiga mesquita de Kashan, confiscado no século XIX para a secção islâmica do Museu de Berlim. Quanto ao espólio do Tepe Sialk, há que ir ao Museu Nacional do Irão, em Teerão, ao Louvre, ao Museu Metropolitano de Arte, em Nova Iorque, e ao Museu Britânico, onde tem por companhia uma tão misteriosa como sensual deusa da Babilónia, a escultura conhecida por Rainha da Noite, também transviada imperialmente das margens do Tigre.

Três iranianas de hijabs coloridos, mestiçagens harmoniosas de amarelo, cobre e vermelho, vêm caminhando sobre o passadiço de madeira que rodeia o zigurate e sem mais desatam-se ali dois dedos de conversa. Leila e Zohreh, as mais novas, vivem em São Francisco. Estão enfeitiçadas pelo Sialk. "Wonderful, weird place!" Não pude deixar de me lembrar de Parviz, o exilado iraniano de Ierevan que me desenhou num guardanapo um itinerário por lugares menos batidos do Irão e que me falou dos muitos conterrâneos emigrados nos EUA. Tal como Parviz, Leila (pela idade, acima dos trinta, é provável que tenha nascido fora do país após a revolução que gerou a república islâmica de Khomeini) mencionou o passado histórico do Irão e o legado de antigas gerações, e vincou o gentílico "persas", talvez para recordar que a Pérsia, uma das mais velhas civilizações do mundo, o Império Aqueménida e Artaxerxes, Dario e Ciro, Persépolis e Pársagada, Zoroastro e o Império Sassânida, cuja cultura influenciou lugares tão distantes como a Índia, a China e a Europa, são muito anteriores à chegada do Islão. Tem esse refrão certa popularidade no país, quiçá mais nos meios intelectuais. Que pertinência justificará um paralelismo com a observação de Moravia, na sua viagem pela Índia, ao elaborar sobre a chegada do Islão ao subcontinente? Dizia o viajante italiano que, não obstante os elevados contributos espirituais e artísticos dos conquistadores islâmicos, "prevaleceu nos indianos o sentimento atávico de uma catástrofe nacional, de uma laceração irremediável, de algo estrangeiro que desviara de forma definitiva o curso da sua civilização". Mas será esta visão justa para os diálogos culturais sedimentados ao longo de séculos e que definiram - no encontro da Pérsia com o Islão - o que poderíamos designar como a (peculiar) fórmula do Irão?

A erosão de milénios não acabou com o zigurate, mas deu-lhe insólita figura de um monte de barro amassado, uma colina artificial de ouro à luz do ocaso. É agora obra mais do tempo que humana. Serão menos as gerações que a verão do que as que com ela conviveram até agora. O Sialk é um work in progress condenado, como o que veio antes e o que virá depois, ao pó, o destino último de tudo. Eloquência de zigurate.

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Zigurate de Tepe Sialk

Um clube de fãs de Shakespeare

Na casa Tabatabaei, uma das mais interessantes da arquitectura oitocentista de Kashan, o desencanto de Hans, um viajante suíço que aos setenta anos decidiu pedalar pela Ásia Central e pelo Irão, torna-se contagiante. Hans é um pouco magro, mas atlético. Dos marinheiros se diz "tisnados pelo sol". Hans tem ar de marinheiro. A barba grisalha não lhe dá ar algum de patriarca: podia, antes, ser um Confúcio espantado com a desarmonia entre os visitantes e as coisas visitadas. Não há quem se demore mais do que dez segundos em cada uma das salas de tectos decorados com magníficos motivos geométricos, pedra de toque do património de Kashan. Ou diante de outras maravilhas estéticas: uma delicada renda de espelhos, vitrais, azulejaria, pinturas murais. E uma esplendorosa caligrafia de estuque. Quase ninguém se demora mais tempo do que o requerido por uma ou duas selfies. Cada um avalia, num fugaz relance, o ângulo e o pedaço de cenário mais útil à auto-celebração fotográfica.

O Irão é um lugar de encontros - e desde o primeiro minuto na fronteira. A todo o momento pode do céu cair uma estrela, um sorriso, um aceno, um diálogo como um acalanto. Num pequeno claustro, longe da multidão atarefada com cliques, duas moçoilas sorriem ao visitante estrangeiro - a de hijab negro afasta-se; a outra, desempoeirada, logo põe uma nuvem de perguntas a voar. Darya usa um véu vermelho-vinho que só cobre metade do cabelo. Estuda literatura inglesa na faculdade e Shakespeare é o seu autor favorito. E também da amiga. São acólitas de uma espécie de "Shakespeare fan club" iraniano. Leituras? Romeu e Julieta, claro. E o Rei Lear e a sua intriga de tão humanas traições. Vieram de Teerão, que fica a umas três horas por autoestrada, com colegas da universidade. Passeios culturais regulares aqui e ali, Qom, Kashan e Abyaneh, a aldeia de montanha dos arredores conhecida pela cultura única no Irão. Em grupo, rapazes e raparigas. Apesar de todos os apesares, o Irão não é a Arábia Saudita. O viajante vai-se dando conta também das mudanças que fazem a revolução de 1979 e o poder de persuasão dos mullahs cada vez mais coisa do passado. De um pátio ao lado chegam vozes, femininas e masculinas. Cantam e ouve-se um som de alaúde. A música é um elemento muito presente na cultura iraniana.

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Uma arquitectura da intimidade

Tabatabaei, Abbasian, Sultan Amir Ahmad, Borujerdi, Ameri. As casas maiores são como labirintos. Pátios, salões de música, balneários elegantes como palácios, incontáveis quartos e os panjdari, jóia da arquitectura vernacular persa, salões com janelas ogivais e vitrais multicoloridos. É uma arquitectura que reflecte séculos de adaptação às condições climáticas do deserto. E daí as caves, a penumbra, os pátios e os claustros e, naturalmente, o murmúrio e o sortilégio da água nas fontes - como nas aprazíveis sombras do Fin Garden, outro dos ex-líbris da cidade aspirante a figurar na lista da UNESCO.

Algumas das casas históricas têm vindo a ser restauradas para hotelaria, residências ou complexos culturais. Estão imersas na cidade antiga, um emaranhado urbano de koocheh, ruelas características de povoação do deserto, ladeadas de muros e casario ocre edificado com materiais adequados ao clima. Num estranho contraste com os sumptuosos interiores das casas históricas, a velha Kashan é uma cidade cor de terra, como Yazd. E o skyline um panorama de torres de ventilação natural (as bâdgir, artificiosos dispositivos arquitectónicos que conduzem o vento para o interior das construções), irmanadas no horizonte com os esbeltos minaretes das mesquitas.

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Um dos mais famosos hammams do Irão, o do sultão Amir Amhad

Kashan, por dentro e por fora. Kashan da arquitectura de afáveis interiores. Kashan das caravanas e do comércio da seda e de lápis-lazuli do Afeganistão. Kashan-oásis às portas do deserto do Maranjab e das suas dunas de areia e lagos de sal. Kashan da lenda que conta que foi dali que partiram os Reis Magos, idos do Oriente para a Judeia. Kashan do Amin-od-Dowle - caravanserai que é memória vivíssima das rotas da seda, com as suas cúpulas minuciosamente esculpidas por onde a luz e o ar do deserto se filtram. Kashan do bazar de lojas abastecidas de sorrisos e de dádivas - pão, fruta, tâmaras e chá depositados nas mãos perplexas e gratas do estrangeiro.

E Kashan dos encontros. Como todo o Irão. Sim, o Irão é uma terra de encontros, sem pausa, desde a travessia da fronteira. E sendo uma terra de encontros, que a cultura da afabilidade e do cosmopolitismo patrocinam, o Irão é um país onde vale imensamente a pena viajar de forma independente, a maneira que melhor favorece as interacções e a descoberta. Como dizia Hans, ao fim de dois meses a pedalar, pernoitando em aldeias, cruzando desertos de montanhas no horizonte como biombos para além dos quais se acendem os crepúsculos persas, sem agendas contrárias às vivências imediatas, contactando todos os dias com gente curiosa e intrigada pelas andanças, opiniões e felicidade dos viajantes, viajar em grupo significa estrangular a viagem e a extraordinária comunicação que ela pode proporcionar.

Nesta república islâmica (ou estado islâmico, enfim, expressão infelizmente banalizada pelas piores e alheias razões), a solidão está proscrita, sitiada pela solicitude endémica da gente persa, que recebe o estrangeiro como se fora um herói regressado do ventre de uma baleia. Pode achar-se o forasteiro imerecedor de tão voluptuosa hospitalidade e atenção - e nada há de bizarro nisso, já que o mais que fez foi comprar um bilhete de autocarro e atravessar a fronteira. Pode achar-se, enfim, como um personagem de Amos Oz na velha Jerusalém, ao tempo ocupada ainda pela imperialidade britânica, pequeno de mais para tais aleluias.

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