Lourdes Castro, uma artista nouvelle vague num museu francês

No MRAC de Sérignan, na Occitânia, abriu a primeira grande retrospectiva da obra de Lourdes Castro em França. A curadora, Anna Bonnin, destacou na montagem as relações que a obra da artista portuguesa estabelece com a fotografia e o cinema.

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Viveu em França durante 25 anos, mas nunca tinha tido uma grande retrospectiva neste país. Lourdes Castro, uma das mais importantes artistas portuguesas contemporâneas, vê agora esta falha colmatada, com a inauguração, no dia 16, de Lourdes Castro, ombres & compagnie, a grande exposição que o Musée Régional d’Art Contemporain (MRAC) da Occitânia / Pirinéus-Mediterrâneo lhe dedicou. A exposição, feita graças aos empréstimos de colecções públicas tão importantes como as dos museus Gulbenkian, Serralves, Chiado e Colecção Berardo, para além de cedências de coleccionadores privados, é uma apresentação excelente e muito abrangente da obra da artista.

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Ombres portées de Lourdes Castro et René Bertholo, 1964 André Morin

O MRAC fica em Sérignan, a alguns quilómetros de Béziers que é uma das cidades mais importantes do lado francês dos Pirinéus. Anne Bonnin, a comissária da exposição, pensa que a partir de agora se abrirão oportunidades para apresentação da obra de Lourdes Castro noutras cidades francesas, tal como recentemente foi o caso de Paula Rego, que pertence praticamente à mesma geração desta pintora, ou, há alguns anos, de Helena Almeida e Amadeo de Souza-Cardoso. Muitos dos que estavam presentes na inauguração indagaram as razões da retrospectiva do trabalho de Lourdes Castro apenas ter tido lugar agora, ela que viveu os seus anos artisticamente mais fecundos em Paris e que privou e trabalhou com muitos artistas bem conhecidos da cena parisiense dos anos 60 e 70. A interrogação permanece sem resposta.

Mas recordemos as razões desta ligação tão forte que Lourdes Castro tinha com França. Madeirense por nascimento, mudou-se para Lisboa aos 18 anos para estudar nas Belas-Artes. Este não era seguramente o ambiente ideal para uma jovem artista que já sentia o apelo das novas linguagens que o pós-guerra tinha definido, em França como no universo anglo-saxónico. Em 1956 sai da escola, por não lhe ser aí permitido adoptar uma linguagem abstracta, e, como o primeiro marido, René Bertholo, muda-se para Munique. Fica aqui um ano; logo de seguida, já munida da indispensável bolsa da Gulbenkian – uma necessidade imperiosa para qualquer artista da época que quisesse trabalhar no estrangeiro – vai para Paris. Aqui viverá durante um quarto de século.

Em Paris, como quase sempre sucedia com todos os jovens artistas emigrados, é acolhida pelo casal Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szènes. Estes arranjam casa, espaço de trabalho e galeria. Muitos anos mais tarde, Lourdes Castro contaria que o casal mais velho os tratava de “les enfants”, as crianças. Nunca tiveram filhos, e a generosidade que Maria Helena e Arpad demonstraram sempre para estes e outros jovens, forçados a emigrar para fugir ao ambiente tacanho da ditadura já em decomposição, era o oposto da dureza de que o Estado português dera provas quando recusara, nos anos da Segunda Guerra Mundial, a nacionalidade portuguesa ao húngaro Arpad Szènes.

Desta época, a exposição mostra algumas pinturas feitas no espírito da abstracção lírica que estava então na moda na Escola de Paris, próximas da própria pintura de Vieira e de Arpad. Nada mais normal: é preciso primeiro captar a linguagem dos artistas que se admira antes de se poder criar uma obra original. A par destas pinturas, há também na exposição um auto-retrato juvenil, onde Lourdes Castro substituiu a pintura das íris dos olhos por duas manchas acinzentadas, como se se tratasse de uma pintura de dois espelhos. Anne Bonnin chama a atenção para esta peça, e refere que este é o olhar tradicional do pintor, que capta o mundo e devolve o seu reflexo.

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Letras e duas casas, 1962 Paulo Costa/fundação Calouste Gulbenkian

 A curadora possui, de facto, uma série de reflexões totalmente novas sobre a obra de Lourdes Castro que lhe são proporcionadas pelo conhecimento íntimo da cultura da época, e que, nos textos escritos por portugueses que se debruçam sobre a artista, não surgem habitualmente. Assim, passando logo de seguida para as caixas com objectos que se seguem na produção artística da artista, estabelece um paralelismo com o interesse pelo objecto que o grupo dos Nouveaux Réalistes deixava transparecer, muito na linha, de resto, da obsessão da Pop Arte pelos bens produzidos pela sociedade de consumo na década de 60, pouco tempo depois das penúrias e dos racionamentos dos anos de guerra. Nestas caixas, de que a exposição mostra quatro exemplares, nota-se o cuidado com que a artista as recobriu de monocromias, quando não escolheu os objectos que elas contêm segundo um critério cromático ou matérico. Em duas colagens com letras de madeira, colocadas ao lado das caixas, cobriu também toda a superfície com spray prateado.

A monocromia, ou seja, a ausência de caracteres identificadores (a boca, os olhos, o nariz, as feições, em suma) conduzem rapidamente para o campo da representação de sombras, a grande marca autoral de Lourdes Castro. Anne Bonnin fala da leitura de um livro de Adelbert Von Chamisso sobre a história de um homem sem sombra, e do interesse que este negativo da luz – e neste sentido a sombra é o contrário da pintura, que é essencialmente luz – se manifestou na artista a partir desse momento. A exposição apresenta um sem número de sombras pintadas, primeiro, e recortadas em pléxiglas colorido, mais tarde, por vezes numeradas, indicando que se trata de múltiplos. Lourdes Castro desenha sistematicamente o marido, René Bertholo, bem como os amigos. As sombras deixam adivinhar gente que conversa, que lê, que dorme, que fuma, que se beija e que se abraça. Tornam-se moventes, coloridas com o uso do pléxiglas. De certo modo, materializam de uma forma directa o que a fotografia e o cinema fazem já em grande escala e habitualmente no quotidiano dos anos 60 e 70. Anne Bonnin fala da Nouvelle Vague. E diz que Lourdes Castro é muito “nouvelle vague”: coloca em questão os próprios princípios da fotografia e do cinema, tal como Godard, Truffaut e mesmo Agnès Varda o faziam naqueles anos.

Exemplificando a sua tese, aproxima-se de uma mesa onde estão dispostos alguns exemplares da revista KWY, que Lourdes Castro funda em França logo em 1959, e faz-nos notar a participação de um número considerável de criadores – artistas mas também escritores da época – na concepção de cada número. O núcleo duro inicial incluía, além de Lourdes e do marido, os pintores Costa Pinheiro, Gonçalo Duarte, José Escada e João Vieira, a que se juntam mais tarde Jan Voss e Christo. Contudo, era frequente convidarem amigos para paginar determinada secção; a comissária chama-nos a atenção para uma página, concebida por Robert Filliou, onde se vê a fotografia de uma mulher de costas, de cabelo comprido, sobre a qual há um poema dactilografado que repete quase textualmente um diálogo entre Brigitte Bardot e Michel Piccoli no filme O Desprezo, de Godard, afirmando que não há fronteiras entre as diferentes práticas artísticas nesta época.

Os lençóis bordados com contornos de corpos deitados, que chamam a atenção para a recuperação de um trabalho tradicionalmente feminino na ilha da Madeira, acompanha a projecção do único filme feito sobre o Teatro de Sombras, um espectáculo que Lourdes Castro criou com o seu segundo companheiro, Manuel Zimbro. Nesta última secção da exposição apresentam-se obras que estão relacionadas com a contemplação do mundo vegetal, sejam elas os desenhos de contornos de sombras projectada de vasos de flores, sejam as diferentes imagens do Grande Herbário de Sombras, obtidas pela colocação de plantas e flores sobre papel fotossensível. Numa sala do primeiro andar, mais perto agora dos espaços do MRAC destinados à apresentação da colecção permanente do museu e a outras exposições temporárias, mostra-se o Álbum de Família, uma enciclopédia de sombras diversas que a artista tem vindo a coleccionar desde os anos 60. Há também livros de artista, desenhados, feitos com colagens, bordados. O livro, como as outras práticas que na época eram vistas não exactamente integradas no âmbito das belas-artes, sempre mereceu o olhar atento e a prática desta artista, como bem pudemos observar na exposição Todos os livros que teve lugar no Museu Gulbenkian em 2015.

Embora a obra de Lourdes Castro seja hoje considerada com integrando a primeira geração que cria uma linguagem em consonância com a da arte internacional do seu tempo, o que é certo é que ela é também possuidora de uma originalidade que espantou quem a viu pela primeira vez em Sérignan. Há, no entanto, pontos de contacto que podemos estabelecer com outros criadores contemporâneos. A primeira referência está nas Antropometrias de Yves Klein, feitas a partir de corpos femininos pintados que, por pressão, deixam marcas azuis sobre telas brancas. Mas no trabalho da artista portuguesa não há contacto directo (excepto talvez nos bordados, e no herbário que criou) entre o modelo e a sua sombra. É no produto final do cinema, que também trabalha com sombras que se reflectem num ecrã, que de facto pensamos de imediato. Anne Bonnin destaca dois contornos de amigos cineastas desenhados segurando a câmara de filmar, para voltar a acentuar este paralelismo e nos dar a entender que tudo, na obra de Lourdes Castro, tem a ver com a imagem fugidia e efémera dessa disciplina artística.

Nada de mais aqui: o cinema sempre influenciou a prática dos artistas. Já o contrário só raramente aconteceu. No catálogo cita-se Topor, que além de pintor foi também actor, e que vivia acompanhado pela sua sombra bordada na cortina da janela. E que se espantava que o seu corpo “tão cheio, tão pesado e tão presente contivesse tanta ausência”. A sombra, ou o contorno, não sendo reais, apenas podem traduzir uma estética da ausência e do desaparecimento. Como na obra de Lourdes Castro.