Fim do direito de veto nas decisões fiscais divide eurodeputados portugueses

Perda de soberania e de capacidade negocial na Europa preocupa opositores. Para quem defende a mudança, esta é a forma de desbloquear reformas essenciais para assegurar equidade no mercado único e combater os paraísos fiscais, mas também de captar receitas para engordar o orçamento comunitário.

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Plenário do Parlamento Europeu Reuters/CHRISTIAN HARTMANN

O fim do veto dos governos nacionais a medidas de política fiscal propostas por Bruxelas daria mais protagonismo ao Parlamento Europeu (PE), que deixaria de ter um papel meramente consultivo, mas os eurodeputados portugueses têm visões divergentes quanto às vantagens para Portugal de alterar o processo de decisão.

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O fim do veto dos governos nacionais a medidas de política fiscal propostas por Bruxelas daria mais protagonismo ao Parlamento Europeu (PE), que deixaria de ter um papel meramente consultivo, mas os eurodeputados portugueses têm visões divergentes quanto às vantagens para Portugal de alterar o processo de decisão.

O roteiro apresentado pela Comissão em Janeiro propõe uma transição gradual, até 2025, do modelo actual, que obriga a uma deliberação por unanimidade dos Estados-membros em matérias de política fiscal, para uma votação por maioria qualificada no Conselho. 

A proposta visa lançar o debate sobre esta matéria, dado que a alteração do processo de decisão só pode avançar se houver uma deliberação unânime nesse sentido dos chefes de Estado dos 28 países. E se o primeiro-ministro António Costa já admitiu estar aberto a esta possibilidade, o tema está ainda longe de ser consensual entre os Estados-membros.

Entre os eurodeputados portugueses, a divergência não se alicerça numa separação clássica entre esquerda e direita nem sequer numa clivagem entre os que defendem uma maior harmonização fiscal à escala europeia ou os que se lhe opõem por princípio, ainda que os adeptos de um maior federalismo se coloquem, sem surpresas, ao lado da Comissão.

Para quem está contra a mudança – como é o caso do PSD e do CDS, mas também do PCP e do Bloco –, a principal preocupação é que a perda do direito de veto dos Estados-membros retire a Portugal a possibilidade de bloquear medidas que prejudiquem o país e torne a política europeia em matéria fiscal refém da vontade das grandes potências, que reúnem maior número de votos.

“Se apenas 16 países quisessem que uma futura máquina tributária a criar em Bruxelas lançasse impostos sobre as actividades no mar português (…) ou sobre a indústria têxtil nacional, ou sobre o que fosse, Portugal não o poderá impedir”, alerta o eurodeputado Nuno Melo, eleito pelo CDS-PP, que tem feito deste tema uma das suas bandeiras no ataque ao Governo.

O fim da unanimidade “só beneficia os grandes países e sobretudo o eixo franco-alemão” com capacidade para reunir mais votos, observa também Marisa Matias, eleita pelo BE. “Portugal, com a regra da unanimidade, está em posição de igualdade com os outros Estados-Membros, concorda José Manuel Fernandes, do PSD, “e, justamente por isso, o seu fim seria negativo”.

Para alguns eurodeputados, esta é também uma questão crucial de soberania nacional. “A política fiscal é e deve continuar a ser uma competência nacional, nomeadamente de Portugal, e ser adequada à sua realidade concreta específica”, reforça Miguel Viegas, eurodeputado eleito pelo PCP. “Lançar e cobrar impostos é uma prerrogativa dos Estados”, reforça Nuno Melo, que se opõe expressamente à criação de quaisquer impostos europeus.

Mas os interesses particulares de cada país podem não coincidir com o benefício colectivo dos 28 Estados-membros, cujas empresas concorrem no mercado interno. É esta, pelo menos, a visão da Comissão que entende que os modelos fiscais de alguns países, que reduzem a carga tributária para atrair investimento e consumidores, ferem a competitividade no mercado único e abrem a porta à evasão fiscal e à fraude. O direito de veto tem permitido travar reformas que Bruxelas considera essenciais, como a taxação de plataformas digitais ou de transacções financeiras, a reforma do IVA ou a criação de uma base comum para os impostos sobre as sociedades.

Combater o “dumping” fiscal

A possibilidade de desbloquear reformas fundamentais é uma das vantagens apontadas pelos eurodeputados que se colocam ao lado da proposta da Comissão. “No mercado interno não temos concorrência leal, se continuamos a admitir que os Estados-membros rivalizem entre si, numa corrida para o fundo, no ‘dumping fiscal’”, argumenta Ana Gomes, eleita pelo PS.

A alteração do processo de decisão é vista assim como um meio para um fim: garantir celeridade e eficácia no processo de decisão para combater os paraísos fiscais, mas também o crime organizado e grupos terroristas, que se escudam na falta de consenso entre governos e nas regras diferenciadas de país para país para escapar à máquina tributária. “A segurança dos cidadãos está aqui também, claramente, em causa!”, frisa a eurodeputada.

A possibilidade de canalizar mais receitas para o orçamento comunitário é igualmente valorizada por quem defende o fim da unanimidade. “Só com a celeridade nos compromissos proporcionada pela votação por maioria qualificada poderemos harmonizar regras fiscais e aprovar um orçamento comum de maior dimensão”, salienta José Inácio Faria, eleito pelo Movimento Partido da Terra.

Mas a evolução para um regime fiscal mais harmonizado à escala europeia não é necessariamente rejeitada pelos partidos que defendem a manutenção do direito de veto. O PSD, por exemplo, vê benefícios nesta concertação e na criação de impostos europeus para captação de recursos próprios. “Seria importante que todos os parlamentos nacionais chegassem a acordo para uma taxa sobre as transacções financeiras e a taxação das grandes plataformas digitais como a Google e o Facebook”, exemplifica José Manuel Fernandes. Dessa forma, “tínhamos aumento de receita sem atingir os contribuintes”, argumenta, e “isso iria beneficiar os portugueses, que assim não teriam de transferir tantas verbas para a UE”.

Segundo as estimativas avançadas pela Comissão, a não aprovação destes dois diplomas implica perdas anuais de receita superiores a 60 mil milhões de euros.

Já para António Marinho e Pinto, “há vantagens e desvantagens consoante os assuntos que estiverem em causa”. Para o eurodeputado do Partido Democrático Republicano, esta é antes uma questão de princípio: “nenhum órgão colegial será eficaz ou funcionará convenientemente se cada um dos seus membros tiver direito de veto em relação a cada uma das deliberações desse órgão”. E recorda: “a democracia assenta na maioria e não na unanimidade”.

Brexit: mais um motivo ou apenas um pretexto?

Quanto à urgência de tomar medidas, numa altura em que o Reino Unido, um centro financeiro relevante, prepara a sua saída da União Europeia, as opiniões também divergem.

Para alguns, este é um motivo adicional para uma maior concertação fiscal entre os 28. “O Secretário de Estado [britânico] Jeremy Hunt já veio erigir Singapura, um paraíso fiscal, como modelo para o Reino Unido”, recorda Ana Gomes. “Só poderemos combater uma tal ofensiva com uma política fiscal harmonizada na UE”. O facto de a União Europeia perder um dos seus maiores contribuidores, observa, por seu lado, José Inácio Faria, do MPT, torna “urgente a aprovação da proposta da Comissão de aumentar os limites máximos dos recursos próprios, o que implica necessariamente uma maior concertação fiscal entre os Estados-membros”.

Para outros, esta é apenas uma desculpa para caminhar rumo à harmonização à revelia dos governos nacionais. “A saída do Reino Unido é a maior das falácias usada pela macrocefalia de Bruxelas - maioritariamente controlada pela França e Alemanha - para tentar impor, passo a passo, a transformação da UE numa federação”, defende Nuno Melo. O comunista Miguel Viegas faz uma análise semelhante: “Essa saída está a ser usada como pretexto para abrir espaço a uma 'política fiscal europeia', a que nos opomos”.

Alterar o processo de decisão sobre questões fiscais é possível sem alterar o Tratado da UE, através de uma cláusula ponte, prevista no artigo 48.º, que só pode ser accionada pelo Conselho Europeu, que reúne trimestralmente, e apenas se houver unanimidade entre os chefes de Estado dos 28 Estados-membros. Esta decisão teria ainda de ser comunicada a todos os parlamentos nacionais e, caso algum deles rejeitasse a decisão, o processo seria travado. Para ser efectiva, a mudança teria ainda de ser aprovada por maioria no Parlamento Europeu.