A escola em competição desportiva
Uma escola determinada pela lógica dos rankings é um crime perpetrado por gente irresponsável. Não é uma escola, é uma instituição de filisteus.
Aí temos o acontecimento anual, que chega sempre no Inverno: os rankings das escolas, elaborados e divulgados pelos jornais. Vêm acompanhados por uma linguagem anfíbia que mistura o vocabulário da competição desportiva com o jargão do management público. Uma injunção recorrente, “Vê em que lugar ficou a tua escola”, torna a visita obrigatória a alunos, professores, pais e demais família. Ao apelo não resistem sequer os vulgares passeantes que só por ocasional flânerie se aproximam das escolas, mas adoram lista e montras. Uma vez encenado e exibido o modelo competitivo, as gentes – profanas e iniciadas – ficam com um magnífico brinquedo à disposição, que lhes dá um indubitável prazer. A este fenómeno chamam os ludólogos, usando uma palavra inglesa, gamification.
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Aí temos o acontecimento anual, que chega sempre no Inverno: os rankings das escolas, elaborados e divulgados pelos jornais. Vêm acompanhados por uma linguagem anfíbia que mistura o vocabulário da competição desportiva com o jargão do management público. Uma injunção recorrente, “Vê em que lugar ficou a tua escola”, torna a visita obrigatória a alunos, professores, pais e demais família. Ao apelo não resistem sequer os vulgares passeantes que só por ocasional flânerie se aproximam das escolas, mas adoram lista e montras. Uma vez encenado e exibido o modelo competitivo, as gentes – profanas e iniciadas – ficam com um magnífico brinquedo à disposição, que lhes dá um indubitável prazer. A este fenómeno chamam os ludólogos, usando uma palavra inglesa, gamification.
A competição das escolas evoca o ágon dos antigos gregos, isto é, a luta, o desejo ardente de combate. Para dar corpo e sabor aos rankings, os jornais apresentam os protagonistas, os heróis, os alunos acrobatas que sobem ao topo da escala. E visitam as escolas que são laboratórios de sucesso e postos avançados de metodologias e trabalho produtivo. O director de uma delas garante: “Estes alunos suaram de facto, mas isso dá-lhes estofo para o que vem a seguir”. Nem por sombras o director suspeita da ambiguidade das suas palavras. Delas, podemos deduzir uma promessa de sucesso, através da aquisição e treino de uma força que, embora aliene o presente, promete um futuro cheio de ganhos (é a famosa experiência dos velhos administrada aos jovens, que têm tanto mais sucesso quanto melhor souberem queimar etapas). Mas, se não formos ingénuos, vemos nelas, logo em primeiro lugar, outra coisa diferente: a miséria da condição estudantil, quando o estudo é preparação para uma corrida de obstáculos, cuja meta — está implícito — é o mercado de trabalho.
Nietzsche exaltou a ambição de combate, o desejo de competição, de disputa, lamentando a ausência de sentimento agónico, sintoma de um cansaço social. Mas hoje, decorridos cerca de 150 anos sobre a reflexão nietzschiana acerca do “ágon homérico”, o cenário mudou obviamente e o agonismo, na escola e no trabalho, ganhou uma força exasperada e surge agora esvaziado de toda a virtuosidade social (e não são apenas os rankings das escolas que o mostram), ao ponto de se ouvirem apelos, vindos de lugares insuspeitos, até de sítios onde antes ela era um dogma, para que se suspenda a competição, depois de se terem identificado os seus efeitos nefastos. Suspender a competição não é o mesmo que suspender a competitividade ou anular o agonismo. Isso seria errado e, além do mais, irrealizável.
Os rankings são uma ideologia, não são uma pedagogia nem servem o estudo. Eles – e falamos agora dos rankings em geral — derivam do modelo do desporto competitivo, servem a ideia de uma competição generalizada. O único sistema que eles conhecem, que se impôs como sendo imparcial e objectivo, é o sistema quantitativo. Toda a infinita rede das práticas sociais, não só profissionais, traduzem-se num imenso tecido de classificações baseadas em contagens, pontuações, de modo a permitir, graças à potência dos sistemas informáticos de armazenamento de dados, estabelecer a posição de qualquer Estado, de qualquer empresa e, no limite, até de qualquer indivíduo, numa escala graduada de nível universal, fruto da integração de todas as graduações possíveis. Chega-se assim ao ranking total e de última instância.
Pôr toda a população escolar a participar num confronto agonístico é matar a escola. É que não são apenas os alunos que estão em confronto uns com os outros (lemos numa outra reportagem: “Há pais que escolhem o jardim-de-infância já a pensar nos rankings”), a participar numa luta de todos contra todos, também os professores estão obrigatoriamente mobilizados para este agonismo escolar. E esse, como sabemos, não é o único campo de batalha para onde estão necessariamente convocados. Uma escola deste tipo, determinada pela lógica dos rankings, é um crime perpetrado por gente irresponsável. Não é uma escola, é uma instituição de filisteus.