Morreu Sequeira Costa, um dos grandes pianistas portugueses do século XX
O pianista e pedagogo Sequeira Costa morreu aos 89 anos nos Estados Unidos. Fundou o Concurso Vianna da Motta e o Festival de Música da Póvoa de Varzim. “No seu tempo áureo foi o maior pianista português”.
José Carlos Sequeira Costa, um dos grandes pianistas portugueses do século XX, morreu na quinta-feira em Olathe, nos Estados Unidos, onde morava, aos 89 anos, disse esta sexta-feira ao PÚBLICO o pianista Artur Pizarro, seu aluno e com quem tinha uma relação familiar. A causa da morte não é conhecida.
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José Carlos Sequeira Costa, um dos grandes pianistas portugueses do século XX, morreu na quinta-feira em Olathe, nos Estados Unidos, onde morava, aos 89 anos, disse esta sexta-feira ao PÚBLICO o pianista Artur Pizarro, seu aluno e com quem tinha uma relação familiar. A causa da morte não é conhecida.
Sequeira Costa fundou o Concurso Internacional Vianna da Motta — pianista e compositor de quem foi aluno —, uma influência importante na introdução de padrões de exigência no meio musical português, como disseram vários musicólogos ouvidos pelo PÚBLICO.
“Foi o último pianista português de uma linhagem que remontava ao Romantismo, fundamentada não só no estudo profundo das obras e da técnica pianística, mas também no conhecimento do contexto social, cultural, artístico e político em que os compositores viveram”, diz o musicólogo Rui Pereira, adjunto do director artístico da Casa da Música, que não hesita em afirmar: “No seu tempo áureo foi o maior pianista português, gozando de grande reconhecimento internacional e de um repertório muito vasto”.
Cedo radicado nos Estados Unidos – fez a sua carreira académica na Universidade do Kansas –, o pianista português, diz Rui Pereira, “via com amargura a impossibilidade de uma boa formação ou o desenvolvimento de uma carreira em Portugal, conhecendo bem as lacunas que o país sentia na segunda metade do século passado”. As suas aparições em Portugal, acrescenta, “resumiam-se praticamente à temporada de música da Gulbenkian, a recitais esporádicos no Orpheon Portuense e no Círculo de Cultura Musical, aos Cursos de Interpretação do Estoril e ao Festival Internacional da Póvoa de Varzim”.
O musicólogo evoca ainda o “feito extraordinário” de 2009, quando, no âmbito da celebração dos seus 80 anos, Sequeira Costa interpretou, no espaço de duas semanas, oito concertos para piano com a Orquestra Sinfónica da Casa da Música.
“A intensidade e paixão com que vivia a sua arte e a consciência plena do trabalho árduo de que necessitou para alcançar uma carreira internacional tornaram-no intolerante perante o mínimo sinal de amadorismo e uma pessoa por vezes distante, muito temperamental, quer com alunos, quer com o próprio público, a quem não permitia atrasos ou o mínimo barulho que perturbasse a música”, conta ainda Rui Pereira.
“É um dos grandes pianistas e intérpretes do século XX em Portugal, um professor reconhecido e uma referência a nível internacional”, concorda Manuel Pedro Ferreira, musicólogo e crítico de música do PÚBLICO. Sequeira Costa representa a continuidade da escola do pianista e compositor José Vianna da Motta (1868-1948), uma escola alemã enraizada na renovação das práticas interpretativas do final do século XIX, que procurava, através de um grande controlo gestual, maior clareza e rigor.
“Tem um grande peso em Portugal, porque representa uma das melhores escolas pianísticas no ensino do instrumento”, diz ainda Manuel Pedro Ferreira. “Teve bastante influência através dos seus discípulos, o mais conhecido dos quais é Artur Pizarro, mas também através do concurso internacional Vianna da Motta, que ele criou em 1956”, acrescenta. “O concurso tinha uma exigência enorme, o que fez com que várias edições não tivessem um primeiro classificado.”
Numa entrevista ao PÚBLICO feita em 2001, explicou o que procurava transmitir aos seus alunos: “Por um lado, a disciplina e, por outro, a cultura. O pianista ou o músico que quer seguir carreira deve estudar também outras disciplinas — história de arte, filosofia, etc. —, que lhe permitam ter uma cultura vasta. Isso só reverterá a favor da sua própria linha interpretativa. Porque há muitos pianistas que só tocam piano e não querem saber de mais nada. Menciona-se um escritor, um poeta, um pintor e eles nunca ouviram falar.”
Sequeira Costa tinha alguns músicos dilectos como Beethoven, Liszt e Rachmaninov: “Rachmaninov é um desafio técnico enorme e as interpretações dele que fez e gravou são modelares”, defende Manuel Pedro Ferreira. Na mesma entrevista ao PÚBLICO, conduzida pela crítica Cristina Fernandes, o pianista falou da sua gravação integral das 32 Sonatas de Beethoven, um dos maiores desafios que enfrentou já aos 70 anos. “Quando somos novos há uma tendência para tocar mais rápido. Neste momento sinto uma espécie de apaziguamento interior. Não se trata de tocar mais devagar no sentido de arrastar, mas de tocar com mais substância, com mais miolo, de uma maneira menos superficial. A técnica tem de estar ao serviço da música e não do espectáculo.”
O pianista Nuno Vieira de Almeida nota que Sequeira Costa afrontava um tipo de reportório que impunha grandes dificuldades técnicas. “Era um pianista de uma grande virtuosidade, porque tocava as obras mais difíceis como se fossem uma evidência, quando não o são para ninguém, porque exigem muito trabalho: nem toda a gente pode fazer a integral dos estudos de Chopin”, diz. “Sequeira Costa foi também um dos melhores pianistas a tocar Ravel que conheço; não me lembro de ouvir nenhuma interpretação de Gaspard de La Nuit com tanta perfeição e com tanta limpidez.”
“A par do legado enquanto pedagogo, interpretações magistrais do Gaspard de la nuit, de Ravel, dos Concertos para piano de Rachmaninoff ou das Sonatas para piano de Beethoven, farão dele uma lenda eterna do piano”, conclui o musicólogo Rui Pereira.
José Carlos Sequeira Costa nasceu na cidade de Luanda, em Angola, a 18 de Julho de 1929. Poucos anos depois, a família mudou-se para Moçambique, para a actual Maputo, acompanhando a carreira do pai. Aos oito anos, foi mandado para Lisboa para continuar os estudos musicais com Vianna da Motta, o mestre com quem trabalhou nove anos até à sua morte em 1948.
Em 1951, venceu o Grande Prémio de Paris, no Concurso Internacional Marguerite Long, um espelho da influência da escola francesa na sua linguagem interpretativa. Além de Long, Sequeira Costa estudou também com Jacques Février, Mark Hamburg e Edwin Fisher.
Cinco anos depois do Grande Prémio de Paris, criava o Concurso Internacional de Música de Lisboa Vianna da Motta. Quase 50 anos depois, explicava ao PÚBLICO por que razão tinha fundado este concurso aos 27 anos: “Quis homenagear a memória do meu mestre. Foi uma espécie de amor espiritual [...] Estávamos em 1956, tive o apoio do Ministério da Educação, mas naquela época era muito difícil a aceitação de um concurso internacional. Eu não podia deixar de convidar países de Leste, algo que eles não queriam. Lutei imenso e acabei por ter autorização, mas logo na primeira edição os três primeiros prémios foram concedidos a dois soviéticos e a um polaco. Foi um grande sarilho.” O primeiro prémio foi para Naum Shtarkman.
Era o ano do primeiro Sputnik soviético e o regime ditatorial de Salazar achou demasiado: “Logo a seguir tive uma carta da Presidência do Conselho de Ministros a proibir-me de continuar. O concurso esteve seis anos sem se realizar.” Na edição seguinte, ganhou novamente um soviético, Vladimir Krainev, mas também um brasileiro, Nelson Freire.
Em 1958, a convite de Dimitri Chostakovitch, mostrando o prestígio de que já gozava, fez parte do primeiro júri do Concurso Internacional Tchaikovsky, em Moscovo. Foi em 1976 que se mudou para os Estados Unidos, onde era professor de piano na Universidade do Kansas.
“Foi alguém que num meio musical que era ainda muito local e amador impôs padrões de grande exigência profissional e artística. Havia casos esporádicos, como o [maestro] Pedro de Freitas Branco, mas como instrumentista, num meio ainda muito diletante, ele ajudou a ter padrões de referência e de qualidade interpretativa que não eram habituais”, diz o musicólogo Rui Vieira Nery.
Na geração anterior à Maria João Pires, Sequeira Costa foi o único pianista português que teve uma sólida carreira internacional como concertista, acrescenta Nery. “Era um pianista notável, com uma segurança técnica muito grande, com um controlo de qualidade muito rigoroso. Não era um intérprete de grande espontaneidade, mas comovia-nos pela profundidade das leituras que tinha das obras, pela inteligência da construção da forma.”
Rui Vieira Nery destaca ainda as suas qualidades extraordinárias de pedagogo. “Cá, teve uma breve passagem pelo Conservatório de Lisboa. Tinha também um estúdio em que dava aulas, em geral em colaboração com a Tania Achot, a sua segunda mulher, mas depois foi para os Estados Unidos, para a Universidade do Kansas, em Lawrence, onde construiu uma escola importante e chegou a Professor Emérito, com alunos de todo o mundo. Tem uma quantidade de alunos de referência, a começar por Artur Pizarro, pelo Paulo Santiago, pela Carla Seixas. O próprio Pedro Burmester chegou a ter aulas com ele.”
No início da década de 80, Burmester teve aulas particulares com Sequeira Costa em Lawrence e recorda agora essa experiência como fundamental na sua formação e carreira. “Depois de dez anos a estudar com a D. Helena [Sá e Costa], que baseava a sua pedagogia na intuição e no estilo, com Sequeira Costa aprendi que era preciso saber tudo sobre o instrumento, compreendê-lo”, diz, realçando “o conhecimento profundíssimo” que este tinha “do piano e dos meios que eram precisos para traduzir aquilo que se quer fazer”.
Pela sua “exigência no que respeita a saber como fazer e por que fazer as coisas de determinado modo”, o contacto do pianista portuense com o seu novo mestre “foi uma revelação”. Sequeira Costa tinha um nível de exigência raro, que lhe advinha, acrescenta Burmester, dos seus próprios mestres, entre os quais Vianna da Motta.
O próprio Sequeira Costa inventariou essa linhagem em declarações feitas à Lusa em 2006: “Formamos uma escola excepcional: Beethoven, que ensinou Carl Czerny, que foi professor de Franz Liszt, que por sua vez ensinou Vianna da Motta, eu, seu discípulo, e a seguir a mim Artur Pizarro”.
O pianista, diz ainda Burmester, viveu com “uma entrega total à música, quase como se de um sacerdócio se tratasse”, e nesse aspecto aproximava-se de Helena Sá e Costa. “Grande pianista e grande pedagogo, não há muitos assim”, acrescenta, dizendo que Sequeira Costa deixou marca e “vai deixar saudades”. E confessa: “Sempre que preparo uma peça, pergunto-me como é que Sequeira Costa e a D. Helena a abordariam”.
Autor de uma extensa discografia, Sequeira Costa editou a integral das sonatas para piano de Beethoven, gravou as obras integrais para piano e orquestra de Schumann, Rachmaninov e Chopin, e devem-se-lhe ainda gravações de referência da obra de Vianna da Motta.
Entre as iniciativas paralelas à sua carreira como pianista, deve-se a Sequeira Costa a criação do Festival Internacional de Música da Póvoa de Varzim, que no ano passado assinalou a 40.ª edição. João Marques, que em 2018 se despediu do cargo de director artístico do festival, recorda a importância do pianista e as circunstâncias em que lançou este projecto. “Desde o início dos anos 70, Sequeira Costa dava recitais com grande frequência no Casino da Póvoa, e em 1978 desafiou a administração a criar um verdadeiro festival internacional de música. A proposta foi aceite, e a primeira edição do certame foi lançada logo no ano seguinte, com o nome de Festival Internacional de Música da Costa Verde, tendo Sequeira Costa assumido a direcção desde o início. “E aí ficou até 1988, ano em que o festival passou por momentos de crise”, diz João Marques, que nessa altura assumiu a sua direcção.
Enquanto director do festival, Sequeira Costa fez chegar à Póvoa de Varzim muitos nomes grandes da música mundial, como os violoncelistas Mstislav Rostropovitch e Paul Tortelier ou os pianistas Alfred Brendel e Aldo Ciccolini, lembra João Marques, sublinhando também a sua atenção aos jovens intérpretes portugueses. “Artur Pizarro actuou no festival em 1982 e Pedro Burmester no ano seguinte”.
Homenagem no São Carlos
Da ministra da Cultura, Graça Fonseca, ao comissário europeu para a Ciência, Investigação e Inovação, Carlos Moedas, têm sido muitos os que lamentaram publicamente a morte de Sequeira e Costa. “É uma perda imensurável”, diz o pianista João Bettencourt da Câmara, que o descreve como “um dos maiores pianistas do século XX, respeitado e admirado pelos grandes compositores e pianistas” seus contemporâneos.
Também a famosa fabricante alemã de pianos de concerto, C. Bechstein, recorda o músico português como um “pianista excepcional e um artista notável” que “fará muita falta”.
O Teatro Nacional de São Carlos, evocando a longa ligação do pianista àquela sala de Lisboa, onde actuou pela primeira vez em 1948, aos 18 anos, como solista do Concerto n.º5 de Beethoven, anunciou que dedicará à memória de Sequeira Costa o concerto sinfónico desta sexta-feira à noite, no qual a Orquestra Sinfónica Portuguesa, sob direção do maestro Pedro Neves, interpretará uma obra de Vianna da Motta.
Numa das passagens do pianista pela Gulbenkian, a musicóloga Teresa Cascudo, observando que “a sua paleta tímbrica apresenta aos ouvintes uma variedade de cores deslumbrante”, escreveu no PÚBLICO: “O piano de Sequeira Costa é uma verdadeira orquestra”.