Cass McCombs com o peso e as medidas perfeitas

O oitavo álbum mostra-o um artesão, com marca autoral vincada, no domínio perfeito da sua arte.

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Cass McCombs a liderar uma banda inspiradíssima, agindo em estúdio como o vemos em palco SILVIA GRAV

I’ve been reincarnated into this thing / That resembles nothing of the former man”. Lá vai Cass McCombs, cá está ele, ao oitavo álbum, a dizer-nos que é agora outro, guitarra aberta no seu movimento circular encantatório, a voz em tom de vigília e o órgão sonhando outras paragens no final de cada compasso. Claro que McCombs, o intrigante e fascinante cantautor que julgamos conhecer melhor a cada novo álbum lançado, seria o primeiro a avisar-nos do erro decisivo que cometemos: nada do que escreve é autobiográfico, nada dele encontramos nas palavras que canta. McCombs fala sempre pela voz de alguém e as suas canções pertencem às personagens que encarna em música — assim se vai revelando sem se mostrar verdadeiramente.

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I’ve been reincarnated into this thing / That resembles nothing of the former man”. Lá vai Cass McCombs, cá está ele, ao oitavo álbum, a dizer-nos que é agora outro, guitarra aberta no seu movimento circular encantatório, a voz em tom de vigília e o órgão sonhando outras paragens no final de cada compasso. Claro que McCombs, o intrigante e fascinante cantautor que julgamos conhecer melhor a cada novo álbum lançado, seria o primeiro a avisar-nos do erro decisivo que cometemos: nada do que escreve é autobiográfico, nada dele encontramos nas palavras que canta. McCombs fala sempre pela voz de alguém e as suas canções pertencem às personagens que encarna em música — assim se vai revelando sem se mostrar verdadeiramente.

É então verdade que o californiano Cass McCombs, ele que já foi country-rocker de recorte (mais ou menos) clássico, que já foi esteta psicadélico, que já foi americano em Londres (livremente) inspirado pelos clássicos britânicos, que foi soulman caminhando entre assombrações, não pode ter reencarnado alguém sem quaisquer semelhanças com o seu eu anterior. É também verdade que Tip of The Sphere, sucessor de Mangy Love, álbum editado em 2016, é um disco de micro-reencarnações, digamos assim, em que reencontramos, em novas composições, pedaços daquilo que McCombs foi sendo. O segredo, aquilo que faz este álbum de uma hora de duração uma viagem tão completa e inspirada, é a forma como tudo nele parece fluir de forma livre e harmoniosa, qual trabalho de artesão com mão tão treinada e conhecedora que tudo o que dela nasce parece surgir, sem esforço, com o peso e as medidas perfeitas.

Gravado de um fôlego com a sua actual banda suporte num estúdio em Brooklyn (o Figure 8 de Shahzad Ismaily, baixista que vimos recentemente em Portugal enquanto membro dos Ceramic Dogs de Marc Ribot), Tip Of The Sphere é um álbum de rock com planície abrindo-se no horizonte (pedal-steel a colorir o cenário), é um álbum onde o baladeiro folk se liberta no fervilhar discreto do órgão, é um álbum onde o storyteller canta apocalipses pendentes ou aventuras de marinheiros e criminosos algures no Hawai, deixando ainda espaço para, canto transformado em voz falada e caixa de ritmos a fazer a sua aparição, cruzar Suicide, Lou Reed e David Lynch para nos pintar um fresco da América neste preciso momento — “In American Canyon / Where Walmart employees and costumers / Are one and the same / They even built apartments here / To add a residential coffin to the bargain”.

Aquela última que referimos, American canyon sutra, é, no contexto de Tip of the Sphere , a carta fora do baralho — peça desalinhada para dar singularidade ao conjunto. No restante, temos Cass McCombs a liderar uma banda inspiradíssima, agindo em estúdio como o vemos em palco, ou seja, deixando as canções cumprirem-se no tempo e no modo que estas exigem: e, assim, eis os quase oito minutos da abertura, “I followed the river south to what”, e os mais de dez da despedida, Rounder, que evoluirá até que a Americana se transforme em empolgante viagem jazzy iluminada a Fender Rhodes.

Imediatamente antes de Rounder está Tying loose ends, balada belíssima com harmónica perdida lá ao longe, ouvida em surdina sob o diálogo que se estabelece entre a guitarra e um saxofone soprado como brisa quente. Cass McCombs fala de um velho álbum de fotografias e pergunta, “Is there anyone still left who can tell me / who all these people are?”. Cass McCombs não lhes descobre os nomes. “Tying up loose ends, before I gotta go”. É isso que faz, liga pontas soltas — das tablas, violino e piano encantados de Real life” ao country-rock de Sleeping volcanoes —, antes de seguir em frente. Não é uma reencarnação, certamente. É um artesão com marca autoral vincada no domínio perfeito da sua arte. Nunca deixou de ser um prazer reencontrá-lo.