Acabou “a cultura do silêncio” que abafou os abusos sexuais dentro da Igreja

Igreja admite divulgar nome de abusadores condenados e os números dos crimes sexuais que chegam ao Vaticano. Doravante, todos os casos têm de ser comunicados às autoridades civis e os abusadores expulsos. Papa avança com 21 medidas para travar flagelo.

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O Papa pediu aos líderes da Igreja que escutem “o grito dos menores que pedem justiça" GIUSEPPE LAMI/EPA

A promessa – que foi também recado para o interior da Igreja – surgiu pela voz do arcebispo maltês Charles Scicluna, em linguagem clara quanto baste: “A cultura do silêncio é um mecanismo de defesa que não é aceitável. Nós temos que passar para uma cultura da revelação da palavra”.

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A promessa – que foi também recado para o interior da Igreja – surgiu pela voz do arcebispo maltês Charles Scicluna, em linguagem clara quanto baste: “A cultura do silêncio é um mecanismo de defesa que não é aceitável. Nós temos que passar para uma cultura da revelação da palavra”.

Tradução prática: os bispos são obrigados a comunicar estes crimes às autoridades civis. “Os Estados têm medidas coercivas e um modus operandi diferente e que é importante e necessário. Nós [Igreja] temos de agir de maneira compatível e complementar, porque falamos de comportamentos que são crimes e que têm de ser sujeitos à jurisdição civil”, sublinhou Scicluna, perante jornalistas do mundo inteiro que se deslocaram a Roma para o encontro de três dias do Papa com os líderes da Igreja Católica, destinado a discutir medidas capazes de estancar os abusos sexuais de menores no seio da Igreja.

Nos casos de pornografia infantil, reforçou o secretário adjunto da Congregação para a Doutrina da Fé (o organismo da Igreja chamado a julgar estes casos à luz do direito canónico), a Igreja não tem autoridade para investigar. “O Estado sim”, enfatizou, referindo que a congregação de que é membro já está a produzir um manual para ajudar os bispos a lidar com estes casos, o qual, porém, de nada valerá, “se não houver um compromisso dos bispos com a verdade”.

A cimeira arrancou com o Papa a pedir aos líderes da Igreja que escutem “o grito dos menores que pedem justiça”. Conciso e austero, o argentino reclamou acções precisas para estancar a hemorragia em que se esvai a Igreja. “O santo povo de Deus olha para nós e espera de nós, não meras e óbvias condenações, mas medidas concretas e eficazes a implementar. Requer-se concretização”, invectivou Francisco.

As 21 medidas do Papa

Antes, o Papa fizera chegar aos cerca de 190 participantes nesta cimeira um guião com 21 pontos em que reivindica, por exemplo, a criação, nas diferentes dioceses, de estruturas dedicadas a ouvir as vítimas, sendo que estas, especificou Bergoglio, devem “gozar de uma certa autonomia em relação à autoridade eclesiástica local”.

Francisco sugeriu ainda que os candidatos a padres sejam “sujeitos a avaliações psicológicas por parte de peritos qualificados e acreditados”, bem como ajudados a “desenvolver a sua maturidade humana, espiritual, psicossexual, bem como as suas relações interpessoais e comportamentos”.

De resto, clérigos, religiosos, funcionários e voluntários das instituições religiosas devem obedecer a “códigos de conduta obrigatórios” e a Igreja deve abrir a porta à colaboração dos leigos nas investigações.

Quanto às sanções, o Papa opôs-se à publicação de listas de acusados pelas dioceses “antes de serem investigados e definitivamente condenados”.

A pensar nos países em desenvolvimento, o Papa quer ainda aumentar em dois anos a idade mínima das raparigas para casar, até agora fixada nos 14 anos.

Nomes vão ser divulgados

De fora deste guião ficaram várias das reivindicações das vítimas que foram chamadas ao Vaticano, nomeadamente as que se relacionam com a demissão do estado clerical de todos os abusadores e a abertura dos arquivos do Vaticano. Mas, no briefing em que os organizadores desta cimeira responderam às perguntas dos jornalistas, fazendo o ponto de situação dos trabalhos da manhã, Charles Scicluna sugeriu que também estas deverão ser atendidas, nomeadamente quanto à reclamada divulgação dos nomes dos abusadores.

"Escutar significa também considerar a possibilidade de dizer sim a alguns destes pedidos, mas falando sempre de sacerdotes condenados". A Igreja também não exclui a possibilidade de tornar públicos os números dos abusos cometidos ao longo dos anos.

O celibato dos padres e a homossexualidade também foram referidos. Quanto ao primeiro, Frederico Lombardi admitiu tratar-se de um tema a discutir, descartando embora qualquer relação de causa e efeito entre a abstinência sexual dos padres e os abusos sexuais.

Já o tema da homossexualidade surgiu a reboque do livro No Armário do Vaticano, em que o jornalista francês Frédéric Martel aponta práticas homossexuais a uma vastíssima percentagem dos membros do Vaticano. Referindo não ter lido o livro, Scicluna recusou a ideia de que a homossexualidade possa de algum modo predispor aos abusos. "Nunca ousaria indicar uma categoria como sendo aquela que tem propensão a pecar", ressalvou, para concluir: "Todos temos propensão a pecar".

A questão das indemnizações às vítimas dos abusos foi lançada por um jornalista, nos seguintes moldes: "O que devem continuar a pensar os fiéis, sabendo que parte das suas doações serão para pagar esses danos?". E, na resposta, o arcebispo de Malta começou por apontar a importância da prevenção: "Se não apostarmos na prevenção, será uma hemorragia contínua, não só de pessoas que abandonam a Igreja mas de meios financeiros que podiam ser utilizados para obras de caridade, escolas e outras actividades". Mas, acrescentou, "todos temos que prestar contas pelo que aconteceu". E "é importante agir da maneira correcta" em relação às vítimas.