Escolas de betinhos
Rankings baseados em notas querem dizer muito pouco. Mas, na semana dos rankings, é impossível não me perguntar se estarei a fazer as escolhas certas.
A minha filha mais velha fez a escola primária num colégio privado. Depois, foi para uma escola pública. A mais nova está a fazer um percurso similar. Quando a mais velha andava no último ano da primária, os pais das crianças da turma dela organizaram-se para que toda a turma fosse para a mesma escola. Ao longo dessas conversas, houve uma clara clivagem de género. Entre os que tinham filhas, quase todos preferiam uma escola privada (as únicas excepções eram eu e os pais de uma outra moça). Já quem tinha rapazes achava muito bem que fossem para a escola pública. Houve até um caso de uma mãe que tinha um filho na escola pública, escola que elogiava bastante, mas que queria pôr (e pôs) a filha numa privada; como era menina, defendia-se pior, explicava a senhora.
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A minha filha mais velha fez a escola primária num colégio privado. Depois, foi para uma escola pública. A mais nova está a fazer um percurso similar. Quando a mais velha andava no último ano da primária, os pais das crianças da turma dela organizaram-se para que toda a turma fosse para a mesma escola. Ao longo dessas conversas, houve uma clara clivagem de género. Entre os que tinham filhas, quase todos preferiam uma escola privada (as únicas excepções eram eu e os pais de uma outra moça). Já quem tinha rapazes achava muito bem que fossem para a escola pública. Houve até um caso de uma mãe que tinha um filho na escola pública, escola que elogiava bastante, mas que queria pôr (e pôs) a filha numa privada; como era menina, defendia-se pior, explicava a senhora.
Com isto tudo, e salvo algum erro de memória, 11 rapazes e duas raparigas, incluindo a minha, candidataram-se à Escola Básica André Soares. Infelizmente, por causa das novas regras das moradas, apenas quatro ou cinco foram aceites e a minha ficou de fora. Assim, decidimos inscrevê-la num outro colégio privado. Quando soube que tinha de usar um uniforme com saia, fez um berreiro do outro mundo. Queria uma escola pública, não interessava qual. Usou todos os argumentos que tinha à mão. Entre eles, disse-me que os betinhos é que iam para colégios privados e que não queria ser betinha. Também me disse que a escola pública era muito mais fixe, porque os professores faziam greves, enquanto nos colégios havia sempre aulas. Os argumentos eram de peso e, no último dia do prazo, lá a inscrevi na Escola Básica de Lamaçães, escola pública para onde tinham ido outros dois colegas.
Na sexta-feira passada foi dia de greve na função pública. Tal como previsto pela miúda, não houve aulas, pelo que tive de a levar comigo para a universidade. Entre os meus colegas, fui o único com esse problema. Todos os outros têm os miúdos em colégios privados, pelo que nem tinham pensado no assunto. Uns tinham os putos no D. Diogo de Sousa, outros no João Paulo II, outros no Paulo VI — Braga tem um fétiche com colégios com nomes de papas, como se adivinha.
Vivendo numa cidade que tem um colégio sistematicamente no topo dos rankings, o D. Diogo de Sousa, é um pouco difícil não ligar a rankings. Tudo o que conheço daquele colégio, mesmo em termos morais, faz-me querer distância. Mas, nesta altura do ano, há sempre uma pequenina dúvida a roer aqui dentro: que sentido faz ter os filhos em colégios e escolas que aparecem em 200.º ou 300.º nos rankings, quando há uma ali ao lado, ainda por cima bastante baratinha, que está no top-5?
É evidente que sei, como de resto qualquer pessoa sensata sabe, que rankings baseados em notas querem dizer muito pouco. Os vários determinantes das notas dos alunos vão desde factores relacionados com a família, como o status socioeconómico dos pais, a factores relacionados com as escolas — como se seleccionam alunos e se vêem livres dos mais fracos. Só depois de filtrar todos estes efeitos seria possível saber qual o valor que cada escola acrescenta aos alunos que recebe e, com base nisso, fazer um ranking razoável. Percebo e conheço isto tudo, mas, inevitavelmente, na semana dos rankings, é impossível não me perguntar se estarei a fazer as escolhas certas.
Estudei na escola pública e não acho que tenha tido uma má educação. Mas há um aspecto que não posso negar: as minhas turmas nas escolas públicas de Coimbra eram em tudo iguais às turmas que vemos nos colégios privados de Braga. Quando eu andava na escola, havia as turmas dos filhos dos médicos, advogados, engenheiros e professores. Todos os meus colegas, com excepção de três ou quatro, eram filhos de doutores e engenheiros.
Apesar de não ter dúvidas de que muitas das escolas que estão no topo dos rankings são escolas que, simplesmente, conseguem captar bons alunos que, se estivessem distribuídos por outras escolas, também teriam boas notas, a questão é saber se isso não gera por si só efeitos, positivos ou negativos. São os chamados “peer effects”, efeitos dos pares ou efeitos de grupo.
Não sou especialista em Ciências da Educação, pelo que devem dar o devido desconto ao que escrevo a seguir, mas, se parece óbvio que o grupo em que estamos inseridos é importante, também parece óbvio que o efeito depende muito de pessoa para pessoa. Se há quem se sinta motivado pela competição, também há quem se sinta desmotivado ao ver que não se consegue destacar por mais que se esforce. É o eterno dilema de saber se é preferível ser um grande peixe num pequeno lago ou um pequeno peixe num grande lago.
Uma pesquisa rápida pela literatura científica mostra que as minhas dúvidas têm razão de ser. Há estudos bem feitos que concluem que os efeitos de grupo são positivos (ou seja, estarmos inseridos em turmas com excelentes alunos beneficia-nos), mas também há estudos que concluem que é preferível alguém destacar-se numa turma média a ser um aluno médio numa turma excelente. Os mecanismos são vários, como atrair mais a atenção dos professores e o respeito dos colegas, fazendo assim com que a autoconfiança aumente. Ou seja, tanto quanto entendo, relativamente a este ponto concreto, os resultados científicos são dúbios, pelo que não é por aqui que se vai encontrar uma justificação razoável para turmas seleccionadas.
Há um outro lado que me parece importante. Essas turmas de filhos de doutores e engenheiros contribuem para que as crianças e adolescentes vivam numa bolha. É até possível que contribuam para uma menor coesão social, criando uma casta de privilegiados que não tem consciência de que o é. A minha filha, em vez de passar a semana a conviver com pares iguais a ela (betinhos, como lhes chamou), anda numa escola que tem ciganos, negros, imigrantes (a maioria brasileiros), estudantes com deficiências de vários tipos (desde surdos-mudos a crianças de cadeiras de rodas) e, também, alguns filhos de doutores e engenheiros. Mais importante, ao contrário da minha experiência nos anos 80, a turma dela reflecte essa diversidade. Não sei se este ambiente puxa pelas notas dela, mas acredito que lhe faça bem não viver numa bolha de filhos de pessoas iguais a mim.
Com todas estas dúvidas que naturalmente assaltam quem faz opções semelhantes à minha, é bom saber de estudos que mostram, com base em vários milhares de alunos da Universidade do Porto e da Universidade Católica do Porto, que, uma vez chegados à universidade, alunos oriundos das escolas públicas têm um desempenho superior, ainda que ligeiramente, aos dos seus congéneres das privadas.