“Abordámos o suspeito porque era branco e estava numa zona onde só vivem africanos”
Agentes da PSP estão a ser julgados no Tribunal de Sintra por ofensa à integridade física a um jovem que foi abordado junto ao Bairro 6 de Maio, na Amadora, sem sinais evidentes de suspeita. “O local onde está não tem nada que ver com a pessoa”, diz juíza.
Dois agentes da PSP que estão a ser julgados no Tribunal de Sintra acusados de ofensa à integridade física de um jovem, Tiago, explicaram esta quarta-feira que a razão pela qual o abordaram numa passadeira junto ao Bairro 6 de Maio, na Amadora: foi por ser desconhecido, já passar da meia-noite, por ele ser branco e por estar numa zona sensível. “Abordámos o suspeito porque era branco, estava numa zona sensível onde há vários ilícitos criminais e só vivem pessoas de etnia africana. Achámos estranho estar ali àquela hora”, disse o agente Luís Ferreira, o primeiro a ser ouvido.
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Dois agentes da PSP que estão a ser julgados no Tribunal de Sintra acusados de ofensa à integridade física de um jovem, Tiago, explicaram esta quarta-feira que a razão pela qual o abordaram numa passadeira junto ao Bairro 6 de Maio, na Amadora: foi por ser desconhecido, já passar da meia-noite, por ele ser branco e por estar numa zona sensível. “Abordámos o suspeito porque era branco, estava numa zona sensível onde há vários ilícitos criminais e só vivem pessoas de etnia africana. Achámos estranho estar ali àquela hora”, disse o agente Luís Ferreira, o primeiro a ser ouvido.
Os factos aconteceram a 17 de Julho de 2015 quando o jovem, então com 21 anos, ia a sair de um autocarro junto ao 6 de Maio, um bairro de construção ilegal que está a ser alvo de realojamento e demolições há anos. Os dois polícias são acusados pelo Ministério Público (MP) do crime de sequestro agravado e de ofensa à integridade física qualificada e um deles dos crimes de falsificação de documento agravado e denúncia caluniosa.
Segundo o despacho de acusação, os agentes agrediram o jovem com cotoveladas no pescoço, murros nas costas e no abdómen, pancadas na cabeça com as algemas, arrastaram-no e empurraram-no, “tendo ficado temporariamente inanimado”. Na esquadra, colocaram-no algemado numa sala e empurram-no contra as paredes. O rapaz ficou com várias lesões – edemas, cervicalgia, lombalgia, escoriações em várias zonas do corpo – e impedido de trabalhar durante pelo menos quatro dias, acrescenta o MP.
No tribunal, o segundo polícia, Pedro Xavier, reforçou a versão do primeiro. Disse ainda que ele poderia ter estupefacientes e armas. “Armas?”, perguntou incrédulo o juiz Pedro Neves. “Essa da arma não tem pés nem cabeça”, afirmou.
Já antes a presidente do colectivo, Cláudia Martins Alves, tinha questionado a versão do primeiro agente quando este referiu que abordou o jovem — morador nas imediações — por estar naquela zona. “Ouça, o local onde está não tem nada que ver com a pessoa. E suspeito porquê? Quando o abordou, ele não era suspeito de nada. Os senhores vêm acusados de factos graves. O que é que a pessoa ia a fazer para o identificarem como suspeito?”
Luís Ferreira respondeu: “A gente é livre de abordar qualquer cidadão.” A juíza insistiu: “O senhor enquanto polícia vai na rua, vê uma pessoa a andar sem comportamento suspeito, desenrola esta acção. Olhando para trás, parece-lhe que é uma situação normal, que se coaduna com as regras de experiência comum, da acção da polícia e dos cidadãos?” Luís Ferreira respondeu: “Foi isso que me ensinaram.” A juíza concluiu: “Se foi isso que lhe ensinaram, é contra a lei. O próprio julgamento que o senhor faz é destituído de lógica.”
“O que é estar nervoso? Pode ser tudo e não ser nada”
Segundo a descrição dos dois polícias, depois de pedirem a identificação a Tiago ele recusou-se, dizendo que morava nas imediações. “Ele disse: ‘Eu não tenho que dar nada.’ Estava com um ar superdespreocupado, parecia que estava a desvalorizar a nossa actuação policial”, disse ao tribunal o agente Pedro Xavier. “Dizia: ‘A vossa carreira policial vai acabar, não sabem com quem se estão a meter.’”
Face à resistência, foi-lhe dada voz de detenção pelo “crime de desobediência”: “Recusou-se a ir connosco à esquadra.”
Depois Tiago tentou fugir, segundo os agentes. Ao que a juíza comentou, desconfiada: “Como é que ele tenta fugir se estava encostado a uma parede, com dois homens à frente?” Seria algemado, enquanto tentava sacudir os braços num episódio, segundo o agente Pedro, que demorou mais de sete minutos e foi difícil, provocando-lhe “de certeza” lesões, porque ele “estava agressivo”.
Tiago foi acusado de ter mordido o agente Luís Ferreira, que recebeu assistência hospitalar, mas a quem não foi prescrito nenhum analgésico, segundo o próprio. O jovem foi levado para a esquadra, onde continuaria algemado, por estar “alterado e nervoso”, disse o polícia. A juíza insistiu várias vezes: “Isso é uma conclusão sua. O que é que ele fazia para o senhor dizer que ele estava agitado e nervoso? Isso pode ser tudo e pode não ser nada.” Luís Ferreira declarou que Tiago lhes dizia que eles estavam “tramados”. “Ele estava numa sala, numa esquadra e tiveram de algemar porque disse ‘estão tramados’? Sim senhora…”, questionou a juíza, irónica.
Os juízes tentaram perceber o que terá desencadeado uma detenção para a qual não encontraram lógica segundo as explicações dos arguidos. “O que acha que correu mal?”, questionou um juiz. O agente Pedro Xavier emocionou-se e chorou. “A maneira como o Tiago reagiu”, disse baixinho.
A acusação do MP resulta de uma certidão extraída do processo em que o jovem era arguido. O Tribunal de Sintra não o pronunciou e o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou aquela decisão, redigindo um acórdão em Abril de 2017 que sublinhou o direito de resistência: “A detenção de uma pessoa para identificação fora do contexto do Artigo 250 do Código de Processo Penal confere à mesma o direito de resistência, consagrado no Artigo 21 da Constituição.”
Os juízes escreveram ainda que aquele artigo “não permite a identificação de qualquer pessoa encontrada em lugar público, conotado com o tráfico de estupefacientes, sem que sobre ela recaiam ‘fundadas suspeitas da prática de crimes’”. “Para se proceder à identificação de uma pessoa não basta que o local público em que a mesma se encontra seja um ‘local sensível’. Este conceito não foi assumido pelo legislador, já que o mesmo se basta com o local ser público, exigindo, contudo, que existam fundadas suspeitas sobre essa pessoa da prática de crimes.”