Ricardo anda a brincar com o fogo, mas o Elemento é coisa séria

Abriu no Porto aquele que se apresenta como o primeiro restaurante de “firedining” da cidade. Tudo o que é servido é feito em fogo de lenha, saindo do forno ou das brasas que ardem à frente dos clientes. “É um desafio, é saber ou não saber cozinhar”, diz o chef.

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Ricardo Dias Ferreira Nelson Garrido

Porto, oito da noite e uma Rua do Almada quase deserta. O cheiro que se sente no ar é uma espécie de farol, a guiar-nos para uma mesa segura. Se numa noite de Inverno um viajante sente fome, e se cheira a lareira na cidade, é porque está na direcção certa. Número 51, abrimos a porta do Elemento e vamos brincar com o fogo.

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Porto, oito da noite e uma Rua do Almada quase deserta. O cheiro que se sente no ar é uma espécie de farol, a guiar-nos para uma mesa segura. Se numa noite de Inverno um viajante sente fome, e se cheira a lareira na cidade, é porque está na direcção certa. Número 51, abrimos a porta do Elemento e vamos brincar com o fogo.

Ricardo Dias Ferreira, o chef deste restaurante que cheira a lenha e a novo – abriu a 8 de Fevereiro, ainda se afinam alguns detalhes – está atrás do balcão acompanhado por mais três cozinheiros. Sentamo-nos num dos oito lugares deste balcão com vista para o forno e para as brasas onde tudo acontece. “Este é o lugar mais especial da sala”, mesmo de frente para o teatro de operações, diz Patrícia Lourenço, a namorada de Ricardo, que também aqui trabalha. O chef sorri, dá-nos as boas-vindas e volta para as suas fogueiras. O forno crepita com toros de sobreiro, nas grelhas pousadas sobre as brasas vêem-se algumas panelas e cestos de bambu para cozedura ao vapor.

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Nelson Garrido

Tudo o que é servido neste Elemento é feito em fogo de lenha. “Tudo mesmo”, há-de garantir-nos Ricardo, sublinhando que a ligação do gás ainda nem sequer está concluída. Mas esta conversa acontece mais tarde, já depois de termos experimentado o Menu Invicta (55 euros): degustação de sete momentos, que inclui dois pratos de peixe, dois de carne e sobremesa. Para inícios de conversa, o pão (de trigo e azeitonas), acompanhado pela manteiga da casa, de citrinos. E como amuse bouche robalo curado em citrinos com puré de abacate e cebolinho, revela Beatriz, uma das cozinheiras da equipa.

A primeira grande surpresa vem com o primeiro prato da carta: lula, tinta, tutano, avelã. A lula do Atlântico, finamente laminada, tem um sabor pronunciado a grelha e o puré de tinta e tutano combina na perfeição com o conjunto. No copo, Sílica 2017, um DOC Douro de Raul Riba d’Ave. Segue-se o robalo, nata fumada, raiz de aipo e couve. O peixe é de anzol, suculento, e sobre ele repousa uma pequena camada de bottarga, ovas do próprio robalo que aqui são também fumadas. E a couve, que cozeu a vapor, traz também o travo inconfundível da madeira.

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Porque aqui estamos a convite do chef, temos direito a um extra do menu e Ricardo Dias Ferreira informa-nos que é a primeira vez que está a servir a língua de bacalhau, ervilha fresca e molho de manteiga (9 euros). Aceitamos o papel de cobaias e acordamos que, se não gostarmos, o prato não entra na carta. A boa notícia é que, na opinião desta que vos escreve, este é o melhor prato da noite: é certo que o sabor da manteiga está muito marcado, e que o bacalhau pode estar uns piquinhos acima do ponto de sal para paladares mais sensíveis (não é o caso), mas a textura e a delicadeza da língua são surpreendentes. As ervilhas crocantes temperam e equilibram tudo.

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Vazia maturada a 40 dias, bochecha e cebola

Avançamos para as carnes quando chegam mais dois clientes que se sentam também ao balcão – o serviço é rápido e fluido, talvez porque nesta noite de terça-feira a clientela seja pouca. “Terça é um dia mais morto, já temos o restaurante cheio na quinta e na sexta-feira. Estamos a andar com calma, mas a bom ritmo”, conta Ricardo. Para as carnes, então: papada de porco, cherovia, abalone e cogumelos no prato, Artefacto 2015 (Alentejo, 100% Syrah) no copo. A papada é confitada em banha e depois prensada, o abalone servido em lascas finíssimas. Por fim, vazia maturada a 40 dias, bochecha e cebola: carne dos Açores, cebola em puré e uma endívia grelhada com harissa e sumac (especiaria do Médio Oriente). Fecha-se a refeição com texturas de maçã assada no forno de lenha, uma espécie de “tarte de maçã desconstruída”, com compota de maçã, massa quebrada e puré de pastinaca, conta Beatriz, que a finaliza à nossa frente.

Trocar o certo pelo incerto

O serviço está praticamente terminado e sentamo-nos, então, à conversa com Ricardo Dias Ferreira. É uma conversa descontraída, como ele próprio e como o carácter que quer imprimir ao seu Elemento. “É verdade que aqui se faz fine dining, mas quero que as pessoas se sintam à vontade. A minha casa é a casa de toda a gente. Se passarem aqui durante a tarde, por exemplo, ouvem música nas alturas. Estamos a trabalhar, mas no fundo somos todos uns putos a divertirem-se [risos].”

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Ricardo tem agora 30 anos e em 2012, depois de ter rodado já por várias cozinhas de Portugal (hotéis Tivoli Marina Vilamoura, Penha Longa, The Yeatman, West Inn Torres Vedras) e Espanha (trabalhou com Martin Berasategui, o multiestrelado chef espanhol em San Sebastián), decidiu mudar-se para o outro lado do mundo. “Era o que eu procurava na altura. Tinha um pré-acordo no restaurante Quay, de Peter Gilmore, que era o 20.º melhor restaurante do mundo. Vendi o meu carro, comprei um bilhete de avião e fui à aventura.”

Os primeiros meses “foram duros”, recorda o chef formado na Escola de Hotelaria de Lisboa. “Era essencialmente o factor psicológico de estar a 36 horas de casa. Não conhecia ninguém na Austrália, e de repente vejo-me em Sydney, uma cidade com oito milhões de habitantes.” As coisas foram-se encaixando e “um ano e pouco depois” Ricardo foi “aprender cozinha do Médio Oriente”. “Foi quando conheci a Patrícia, portuguesa de Lisboa, num dos restaurantes por onde passei.”

A vida de Ricardo Dias Ferreira “mudou pela segunda vez” quando ingressou como chef de cozinha no restaurante Altitude, no Hotel Shangri-La, em Sydney. “A primeira vez que a minha vida mudou foi quando decidi ser chef de cozinha: acabaram-se os Verões, a vida social. No Altitude mudou pela segunda vez: estamos a falar de um restaurante que move 30 milhões de dólares ao ano. Eram 17 cozinheiros; em média, quase 1000 pratos que saíam por noite.” Em 2016, o Altitude foi considerado o restaurante do ano na Austrália. “Um feito” para um português que chegara àquele país “sem lá conhecer ninguém”. “Foi um dos primeiros uaus! da minha vida.” Um ano depois, o seu restaurante foi classificado com 16 pontos em 20 pela lista Gault&Millaut e nomeado “o melhor restaurante da cadeia Shangri-La”. “Contra rivais de Tóquio, Singapura, Paris.”

A meio de 2017, o dono da companhia pô-lo a tomar conta de “todo o food and beverage do hotel”. “Estamos a falar de um hotel com oito restaurantes, dez cozinhas e 75 cozinheiros. Mal ia a casa, folgava uma vez a cada três semanas, porque quis agarrar aquela oportunidade com unhas e dentes.” Até que, no Verão de 2018, recebeu uma proposta tentadora para se mudar para Hong Kong. “Os vistos para a Patrícia eram complicados, mas para mim estava fora de questão deixá-la para trás. Sentámo-nos a conversar e um mês e meio depois aterrávamos em Lisboa.”

Ricardo e Patrícia tinham decidido trocar o certo pelo incerto – “na Austrália ganha-se bem” –, mas o chef já tinha o “bichinho de querer fazer algo diferente em Portugal”. “Com 30 anos, eu queria fazer isto, era a altura de arriscar.”

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Isto era um restaurante de firedining. “Há milénios que o ser humano cozinha a fogo. E cozinhar com o fogo era aquilo que a minha avó ou bisavó faziam. Para mim, é um regresso à origem, é saber ou não saber cozinhar”, explica Ricardo, sublinhando que chegou a uma altura na sua vida de cozinheiro “em que lidar com maquinaria de alta tecnologia” já o aborrecia.

“Perceber a lenha, perceber o fogo, perceber as brasas, entendê-las e saber ouvi-las, é mais excitante e desafiante do que carregar num botão. Aqui não tenho gás. Praticamos uma cozinha mais neutra e mais saborosa.” O processo é mais lento, reconhece, mas os resultados compensam. “A primeira coisa que fazemos quando aqui chegamos é acender e temperar o forno. Usamos eucalipto para aquecer. Quando está a uma certa temperatura, 180 ou 200 graus, passamos para o sobreiro, porque é uma madeira mais densa e produz uma brasa mais consistente.” A partir do Verão, quando o combustível estiver mais seco, o Elemento passará também a queimar azinheira, carvalho, oliveira: “Tudo influencia o sabor do que vamos comer, cada madeira é feita para algo.”

O mais lógico seria Ricardo ter-se estabelecido em Lisboa, onde nasceu, mas escolheu o Porto por achar “mais desafiante”. “Lisboa está cheia de conceitos e microconceitos. E o Porto tem uma clientela mais dura, mais crítica e mais conhecedora. O desafio era maior.” Faltava encontrar um espaço e este apareceu por acaso. “Um dia, andávamos a passear na zona dos Aliados, virámos para esta rua e vi uma placa a dizer ‘Arrenda-se’.” No número 51 da Rua do Almada funcionara um armazém de ferro (permanecem os vestígios à entrada) e uma loja de chaves; agora, há uma placa castanha com um pinheiro desenhado.

“Eu nasci em Lisboa, mas a minha família é toda da zona de Leiria e fui criado na praia do Pedrógão. O nome Elemento foi uma homenagem à minha terra e a tudo o que se passou no grande incêndio de 2017 no pinhal do Rei. Escolhi o pinheiro para nunca mais nos esquecermos.”

Ricardo pode andar a brincar com o fogo, mas o Elemento é uma coisa muito séria.