BE, PS e SOS Racismo querem esclarecimentos sobre uso pela PSP de critérios étnicos para avaliar risco de bairros

Bloco de Esquerda quer ter acesso à directiva da PSP e a relatórios sobre zonas urbanas sensíveis para saber se houve relação entre ascendência de moradores e comportamentos negativos. PS quer saber que medidas o Governo vai adoptar se prática for confirmada. SOS Racismo pede que Ministério Público investigue.

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O tema das zonas urbanas sensíveis voltou ao debate depois dos acontecimentos no bairro da Jamaica a 20 de Janeiro LUSA/MARIO CRUZ

O Bloco de Esquerda pediu na manhã desta terça-feira ao Ministério da Administração Interna (MAI) esclarecimentos sobre o facto de a PSP usar critérios étnicos para avaliar o grau de risco de zonas urbanas sensíveis, uma notícia avançada pelo PÚBLICO na segunda-feira. À tarde, também o grupo parlamentar do PS enviou um requerimento a questionar o Governo sobre esta prática e sobre que medidas irá adoptar se for confirmada. 

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O Bloco de Esquerda pediu na manhã desta terça-feira ao Ministério da Administração Interna (MAI) esclarecimentos sobre o facto de a PSP usar critérios étnicos para avaliar o grau de risco de zonas urbanas sensíveis, uma notícia avançada pelo PÚBLICO na segunda-feira. À tarde, também o grupo parlamentar do PS enviou um requerimento a questionar o Governo sobre esta prática e sobre que medidas irá adoptar se for confirmada. 

Em requerimento assinado pelo deputado José Manuel Pureza, o BE cita a notícia em que se revela que estes critérios constam de uma directiva confidencial da Direcção Nacional da PSP de 2006, que define o conceito de zona urbana sensível (ZUS). Nela há uma grelha de avaliação dos graus de risco de um bairro, dividida em vários critérios, entre eles as “características da população” — aí, estão incluídos vários subcritérios como a “composição étnico-social”, a densidade populacional do bairro e a existência de residentes com antecedentes criminais.

Já o PS lembra: “Faz parte da matriz fundamental da nossa Constituição, a proibição de qualquer tipo ou forma de discriminação em função da etnia ou ‘raça’. Nessa orientação se fundam todas a políticas públicas que visam a promoção da igualdade, da integração e inclusão social de todas as comunidades independentemente da sua origem e o combate a quaisquer expressões de racismo na nossa sociedade, com as quais o Governo e a Assembleia da República se encontram comprometidos.”

Também a associação anti-racista SOS Racismo quer que o MAI e a PSP esclareçam esta prática e pede ao Ministério Público e à Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial que “instaurem os procedimentos necessários para verificar e fazer cumprir a Constituição e a Lei” e aos partidos “que se pronunciem” sobre estes casos “inadmissíveis num Estado de direito democrático”.

O BE quer ter acesso à directiva e a todos os "documentos da mesma índole que lhe tenham sucedido entretanto"; quer consultar os relatórios de avaliação de ZUS elaborados pela PSP até à data e ver os pareceres da tutela e da Inspecção-Geral da Administração Interna (IGAI) sobre as directivas estratégicas e os relatórios de avaliação das ZUS.

Em entrevista ao PÚBLICO a propósito desta directiva e da utilização deste critério – considerado discriminatório por inúmeros especialistas por associar ascendência étnica a perigosidade e por estigmatizar determinados bairros – a secretária de Estado Adjunta e da Administração Interna, Isabel Oneto, responsável pela pasta, disse que nos relatórios enviados ao seu gabinete não existe qualquer “referência a características étnico-sociais”. Foi peremptória: “Esse não é um elemento na identificação do risco do bairro. Temos bairros com diversas etnias que não são problemáticos nem estão classificados como tal." A existir alguma referência à etnia ou origem racial dos habitantes, é “para identificar [o bairro] na perspectiva da inserção”, afirmou.

Apesar dos vários pedidos de clarificação sobre se esta directiva ou os critérios de definição de ZUS tinham sido revogados, o gabinete de Isabel Oneto não deu resposta. Em entrevista ao PÚBLICO, a governante disse que aquele subcritério tinha sido anulado, mas apenas indicou uma orientação da Presidência do Conselho de Ministro de 2006 onde se recomenda “que as fontes oficiais, nomeadamente as forças de segurança e policiais”, “evitem revelar, nas suas comunicações” sobre operações “a nacionalidade, a etnia, a religião ou a situação documental” dos grupos e pessoas.

Porém, o PÚBLICO teve acesso a três relatórios de avaliação de ZUS de 2016 em que são referidos aspectos sobre a composição étnica da população. Num deles usa-se mesmo a grelha definida pela directiva de 2006 para classificar o grau de risco de bairros num concelho a Norte de Lisboa onde habitam pessoas de etnia cigana, de origem africana e caucasiana, como referem. Os três bairros obtiveram a classificação de Zona Verde (ou seja, grau de risco baixo ou pouco provável) e no subcritério em causa “estável”.

"Comportamentos desviantes"

Na avaliação de bairros de outros concelhos a ascendência é associada a características negativas. O avaliador escreve: o bairro é conotado como ZUS "pelo simples facto de ser um bairro social, maioritariamente habitado por cidadãos, na sua grande maioria africanos e ciganos, os quais são conotados com comportamentos desviantes". Sobre outro bairro lê-se: um “dos problemas é a coabitação entre os moradores do bairro (população cigana e a população cabo-verdiana), pois nota-se muita falta de civismo, o que por vezes leva a alguns conflitos, uma vez que estes não se respeitam e não têm normas de boa vivência em sociedade”.

Segundo escreve o BE, “significa isto que, no quadro de anteriores exercícios de avaliação de risco em zonas urbanas sensíveis, terá sido estabelecida uma relação, baseada em generalizações, entre a ascendência dos moradores, por um lado, e características ou comportamentos negativos, por outro.” Por isso considera que é preciso “esclarecer se os procedimentos referidos na notícia continuam a ser utilizados e, se sim, em que circunstâncias”.

Além disso, “importa clarificar se o princípio constitucional basilar da não-discriminação em função da origem ou pertença étnico-racial, cultural, de género, religião ou orientação sexual é, ou não, escrupulosamente respeitado na avaliação de risco de zonas urbanas sensíveis”.

Já o SOS Racismo enumera casos antigos, de 2004 e de 2012, referindo que “não é a primeira vez que são tornados públicos métodos de avaliação de forças de segurança, com recurso à recolha e tratamento de dados étnico-raciais, dos quais se deduzem causalidades e considerações sobre comportamentos ‘desviantes’, em função da cor da pele ou etnia de cidadãos e cidadãs”.

E lembra que a recolha e tratamento de dados étnico-raciais pela PSP são, “por regra, proibidas, só sendo admitidas em circunstâncias excepcionais, quando verificadas as condições previstas na lei”. Considera ainda “inaceitável” que “o Estado caracterize zonas urbanas, em termos de risco de segurança, por recurso a categorias étnico-raciais, tais como “africanos” ou “ciganos”, e as identifique ou associe a características “desviantes”.

"Secretismo em torno do tema"

A associação refere ainda que “não pode deixar de ser vista como motivo de preocupação a posição de demissão de responsabilidade, relativização da gravidade e de secretismo em torno do tema, sustentada pela reiterada afirmação de desconhecimento por parte de todos os que têm responsabilidades sobre a situação”.

O tema das ZUS voltou ao debate depois dos acontecimentos no bairro da Jamaica, Seixal, em que a actuação da polícia foi fortemente criticada – um vídeo tornou-se viral, e deu origem a um inquérito da própria PSP e da Inspecção-Geral da Administração Interna (IGAI) e a acusações de racismo sobre a actuação dos agentes.