Karl Lagerfeld tornou a moda uma estrela pop e pronta para o Instagram

Karl Lagerfeld ressuscitou a Chanel, mas a marca mais forte que criou foi a sua. Um “génio” no centro das grandes mudanças da indústria dos últimos 30 anos, representava “a alma da moda” e ajudou a torná-la central na cultura popular.

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Com a morte de Karl Lagerfeld desaparece o rosto da moda de autor e de luxo da era pós-couture: o criador que nas últimas décadas esteve no centro nevrálgico do sistema de moda e contribuiu de forma decisiva para posicionar a própria moda no centro da cultura. O octogenário morreu em Paris, capital da moda, cujo rosto ajudou a redesenhar, da década de 1960 da revolução do pronto-a-vestir aos anos do Instagram. 

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Com a morte de Karl Lagerfeld desaparece o rosto da moda de autor e de luxo da era pós-couture: o criador que nas últimas décadas esteve no centro nevrálgico do sistema de moda e contribuiu de forma decisiva para posicionar a própria moda no centro da cultura. O octogenário morreu em Paris, capital da moda, cujo rosto ajudou a redesenhar, da década de 1960 da revolução do pronto-a-vestir aos anos do Instagram. 

O alemão que se confundia com França estava nos dois mundos, o dos ateliers e rarefacção luxuosa da primeira metade do século XX e o do prêt-à-porter pop que simbolizou as grandes mudanças no sistema de moda nos últimos 30 anos. Aquele em que os criadores e costureiros trabalham com a sua própria linguagem em casas históricas, ao mesmo tempo que afirmam a sua identidade em marca própria, em que se aliam momentânea e estrategicamente à moda rápida, em que o design se tornou língua franca e a moda uma moeda de câmbio imediato na cultura popular.

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Em 2010, Karl Lagerfeld com a designer e modelo Ines de la Fressange Gonzalo Fuentes/REUTERS

Karl Lagerfeld, iconoclasta e polemista, ajudou-nos a ver através dos seus óculos escuros a moda como uma lente para o mundo, como um sintoma. “A ubiquidade da moda e as suas diferentes categorias são o meu destino livremente escolhido e consentido”, disse em 2014 ao diário francês Libération.

Atingiu os píncaros da sua carreira — e, argumente-se, do seu talento — quando chegou à direcção da mais emblemática das maisons de mode, a Chanel, e também aí ascendeu à popularidade que o tornou esse rosto conhecido por grande parte do mundo, mesmo aquele que não contacta com o universo moda. A sua imagem era a sua marca: óculos dominadores, cabelo imaculado impecavelmente penteado numa poupa e rabo de cavalo preso num laço de veludo, camisas brancas cortantes, anéis incontáveis nas mãos.

A sua silhueta é mais reconhecível do que qualquer silhueta de moda que criou em mais de 50 anos de carreira. O “kaiser”, como também era chamado, é tão pop quanto os músicos, como Pharrell Williams ou Rihanna, que convocava. O documentário Lagerfeld Confidential (2007) abria a gaveta dos seus anéis, mostrava-lhe as obsessões, as colecções infinitas, a intimidade possível. E permitia-lhe as grandiloquências. “A moda é efémera, perigosa e injusta”, postulava. Sobre si, dizia contraditoriamente no filme ser “um improviso total”. Na verdade, construía-se como um “ícone de moda”, como é descrito no site da sua marca epónima, quando é mais comum serem os designers a construir ícones nas suas musas ou clientes — uma das excepções à regra é Coco Chanel, cujo legado ressuscitou.

Na moda, foi uma força vital durante mais de 30 anos, destacando-se pela sua polivalência em sucessivas colecções para as diferentes marcas onde trabalhava, da Fendi, onde debutou em 1965, às declinações de alta-costura, pronto-a-vestir e resort e cruzeiro da Chanel, mas sobretudo pela forma que a Chanel assumiu durante o seu reinado: plenipotente, majestosa, opulenta. Renascida como marca capaz do cool ou do clássico num só casaco de tweed de gola redonda ou numa mala de logótipo reluzente, é um show na sociedade-espectáculo com as medidas de um ecrã de smartphone.

Os cenários, do supermercado até ao lançamento de um foguetão, passando por um icebergue ou um casino, eram um dos momentos mais esperados a cada estação. Chanel blockbuster, como os filmes que dominam a cultura popular nas últimas décadas, Lagerfeld superstar como as estrelas do cinema e da música que admirava. As redes sociais faziam “gosto” e longe ficavam os dias de uma marca de perfumes órfã da sua fundadora e que “só as mulheres dos médicos parisienses usavam”, como disse em tempos o designer. Distantes estavam também os seus dias como designer a soldo de diferentes marcas, depois de ter passado pela casa Jean Patou (1959) e de ter cumprido uma década a desenhar para a parisiense Chloé (1964-74). Era um “génio que ajudou a fazer de Paris a capital mundial da moda”, como escreveu no Twitter Bernard Arnault, presidente do grupo LVMH, proprietário da Fendi.

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Primavera/Verão 2018 Gonzalo Fuentes/REUTERS

Os especialistas são unânimes: era o mais prolífico dos designers, das peles e cores na italiana Fendi, onde por vezes deixava a sua impressão digital mais vanguardista, às muitas caras da clássica e aspiracional Chanel. Vanessa Friedman, directora de moda e crítica do New York Times, resume: “Era a definição de um poliglota da moda.” O ritmo actual da indústria, que Lagerfeld acabava em parte por ditar como exemplo, é uma das reflexões mais prementes da moda actual e motivou o afastamento de designers como Phoebe Philo ou Raf Simons dos seus cargos exigentes na Céline ou na Dior. “Se não és um bom toureiro, não entres na arena”, diria Lagerfeld, impiedoso, à publicação especializada Women’s Wear Daily.

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O designer alemão morreu nesta terça-feira, aos 85 anos, e marcou as casas Chanel, Fendi e Chloé.

Culto

A alma da moda

Em 1983, o antigo aprendiz de Pierre Balmain e amigo-rival de Yves Saint Laurent chegava à Chanel. Um ano depois fundava a sua marca homónima (com linhas femininas, masculinas e infantis), sem o sucesso em nome próprio que Saint Laurent, o esteta que operou uma revolução no pronto-a-vestir feminino com a mestria dos costureiros do pós-guerra, conseguiu. Mas passado pouco tempo, o alemão era o “director artístico” da Chanel, uma forma de dizer que tinha palavra em todas as expressões da marca, seis letras que valem hoje quase tantos milhares de milhões (quatro mil milhões, segundo os números mais recentes). Ainda assim, Lagerfeld fazia saber que se dissociava do lado negocial da moda.

Autodidacta e ilustrador dotado, assinava cerca de 14 colecções por ano, além das muitas colaborações. Foi emoji e dono de gata ícone (a sua Choupette), colaborador de marcas como a Vans, a Coca-Cola ou a fabricante de lápis Faber-Castell, e foi a faísca inicial do que seriam as populares colecções da marca de moda rápida H&M com criadores de moda — a sua, em 2004, foi a primeira, e o seu êxito ditaria uma estratégia global para as lojas suecas e para a expressão mais acessível do sonho fashion.

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Lagerfeld foi pioneiro na sua colaboração com a H&M Arnd Wiegman/REUTERS

O duro criador de moda que em 1973 fez um pequeno papel no filme L’amour, de Andy Warhol, sabia da importância de saber comunicar a fama, como numa marca bem visível. “Os logótipos são o esperanto do marketing, do luxo e do negócio hoje”, disse o responsável pelos “C” da Chanel e dos “F” da Fendi a pontuar a paisagem urbana, citado pelo site Business of Fashion.

Nascido Karl-Otto Lagerfeldt, em Hamburgo, a 10 de Setembro de um ano por confirmar (1938? 1933? 1935? As suas versões eram muitas mas tudo indica que fosse 1933 a data original), “ele representa a alma da moda: inquieto, prospectivo, e vorazmente atento à nossa cultura em mudança”, como classificava em 2015 a poderosa Anna Wintour, editora da Vogue América, citada pelo New York Times.

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Anna Wintour e Karl Lagerfeld num mural de Bradley Theodore em Manhattan JASON SZENES/epa

“Gorda demais”

Tão emblemática quanto o seu traço “chique-sexy” na Chanel era a sua personalidade marcada, sem filtros, capaz de classificar o ex-Presidente francês François Hollande como alguém que “odeia os ricos” ou de introduzir o Holocausto no debate sobre os imigrantes na Alemanha — “não se pode matar milhões de judeus e depois deixar entrar milhões dos seus piores inimigos”, disse em 2017 na televisão francesa. Em Abril de 2018 disse que estava “farto” do movimento #MeToo e entre os seus contributos para o eterno debate sobre se a indústria da moda de luxo promove ideais de beleza de excessiva magreza está uma famosa frase sobre “mamãs gordas sentadas frente à televisão com os seus pacotes de batatas fritas a dizer que as modelos magras são feias”. Adele é uma estrela que não cabia no seu firmamento — é “um pouco gorda demais”.

O pai era um empresário de sucesso, mas a mãe era o seu ícone — e a sua disciplinadora, impaciente, crítica do nariz ou das mãos do filho. Nos anos 1980, a sua Chanel foi a farda das mulheres que ascendiam no masculino empresarial e a sua marca o palco para as supermodelos que definiriam a moda na década de 1990 — foi ele o “pó de perlimpimpim” que lançou Claudia Schiffer, como escreveu nesta terça-feira a modelo, mas a sua musa foi durante anos Inès de la Fressange. No século XXI, diria num tom entre o jocoso e o classista, que “as calças de fato de treino são um sinal de derrota”.

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Lagerfeld com as top models Cindy Crawford, Helena Christensen e Claudia Schiffer no final do desfile de Primavera/Verão de 1993 da Chanel Reuters

Também a sua capacidade para as verdades momentaneamente absolutas foi transformada em produto Lagerfeld: o livro de dichotes The World According to Karl (2013). Cultivava a sua magreza depois de uma dieta quando decidiu que queria vestir as silhuetas longilíneas criadas por Hedi Slimane para a Dior Homme — e por “credibilidade profissional”, como escreveu no diário britânico Telegraph. Dois anos depois, lançava o seu livro de dietas. Erudito da fotografia e dono de um saber enciclopédico sobre vários temas, tinha a sua própria editora e expôs em França o seu trabalho de fotografia, que também punha ao serviço das revistas de moda ou de campanhas publicitárias.

Na vida pessoal, era-lhe conhecido um grande amor (platónico) nos anos 1970, o aristocrata Jacques de Bascher, que por seu turno tinha uma relação fogosa com Saint Laurent, como recordam os diários franceses Le Monde e Libération.  Dizia que não gostara de ser criança e sabia-se da sua predilecção pela gata e pelo afilhado de dez anos, Hudson Kroenig. Mas a sua relação para a vida era com a moda — os seus contratos com a Fendi e com a Chanel eram vitalícios.

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O designer alemão morreu nesta terça-feira, aos 85 anos, e marcou as casas Chanel, Fendi e Chloé.

Culto

Equiparava o trabalho a respirar e, portanto, a moda à vida. No mais recente desfile de alta-costura da Chanel, em Janeiro, não apareceu para a sua tradicional vénia no final, dizendo a maison que a ausência se devia a cansaço.

A sua substituição colocará mais uma mulher — e na Chanel, de novo uma mulher — na direcção de uma das principais marcas de moda do mundo. “Virginie Viard, directora do Chanel Fashion Creation Studio e a associada mais próxima de Karl Lagerfeld durante mais de 30 anos, tem a confiança de Alain Wertheimer [co-proprietário da Chanel] para criar as colecções, para continuarmos a viver o legado de Gabrielle Chanel e Karl Lagerfeld”, diz a marca em comunicado.

Hoje em dia, a direcção das grandes marcas de moda é como um pequeno e exclusivo mercado de transferências futebolísticas. Karl Lagerfeld estava há 36 anos na Chanel. Disse ao Libération: “[A moda] corresponde à minha natureza mais profunda.”

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