Bónus no IRS só captou 8% de “cérebros” para Portugal

Em 27 mil beneficiários do estatuto que permite pagar um IRS mais baixo só há dois mil “cérebros”, dos quais metade são quadros superiores de empresas. Governo não revela os escalões salariais.

Foto
Gary Waters/Getty Images

O regime fiscal dos residentes não-habituais (RNH), lançado há dez anos para aliciar “cérebros” e pensionistas de outros países a mudarem-se para Portugal, chegou aos 27 mil beneficiários.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

O regime fiscal dos residentes não-habituais (RNH), lançado há dez anos para aliciar “cérebros” e pensionistas de outros países a mudarem-se para Portugal, chegou aos 27 mil beneficiários.

Embora o Governo não esclareça de forma clara que a larga maioria serão pensionistas, um documento que o ministro das Finanças fez chegar há dias ao Parlamento revela uma distribuição muito assimétrica entre as duas grandes categorias de contribuintes do RNH.

Entre o universo dos 27.367 beneficiários, só pouco mais de dois mil (8%) desenvolvem uma das profissões de elevado valor acrescentado, propriedade intelectual, industrial ou know-how que permitem obter o estatuto de residente não-habitual; mais de 25 mil beneficiários (92%) aparecem listados como cidadãos “sem actividade de elevado valor acrescentado”.

Os números estão discriminados numa resposta a uma pergunta feita pelo Bloco de Esquerda em Dezembro, depois de este parceiro parlamentar do Governo ter estado mais de meio ano à espera que a equipa de Mário Centeno prestasse informação sobre o RNH, incluindo sobre uma auditoria da Inspecção-Geral de Finanças (IGF) que expôs debilidades do fisco no controlo dos beneficiários, incluindo para evitar a existência de “falsos não residentes”.

Agora que o Governo deu a conhecer algumas informações parciais e mandou o fisco recolher outras é possível perceber que também entre estes 2140 “cérebros” há assimetrias: quase metade (1024) são quadros superiores de empresas. A seguir, mas com uma diferença significativa, surgem engenheiros (384 beneficiários) e consultores de programação informática (170).

A partir daí, há 80 trabalhadores na área da investigação científica e desenvolvimento, 50 programadores informáticos, 48 professores universitários, 45 consultores fiscais, 42 designers, mais 41 consultores em informática e 24 auditores. No fim da tabela, os beneficiários contam-se pelos dedos das mãos. Entre eles: sete cantores, seis músicos, cinco pintores, quatro psicólogos, dois escultores, um cirurgião, um médico dentista e um pediatra.

Se obtiverem os rendimentos em Portugal, estes profissionais beneficiam de uma taxa de IRS de 20%, independentemente do nível salarial.

Na prática, o regime é apelativo para quem tem um nível de rendimentos que, em condições normais, ficaria sujeito a uma taxa média efectiva mais alta, seja aqui ou no país de origem. Não se sabe qual é a média de rendimentos dos 27 mil. O BE quis conhecer a distribuição por escalões de rendimento, mas o Governo não o revela para já, alegando que o fisco ainda está a fazer “um conjunto de levantamentos” que irá responder a isso.

Diferendo diplomático

No caso dos pensionistas estrangeiros, há cidadãos que conseguem ficar completamente isentos de IRS tanto em Portugal como no país de origem, por causa da combinação das regras do RNH com os acordos fiscais, que dão a Portugal o direito de tributar aqui as pensões pagas por esses Estados (mas como a taxa em Portugal ao abrigo do RNH é de 0%, esses pensionistas conseguem ficar isentos cá e lá).

Portugal começou a aparecer na imprensa internacional com o rótulo de el dorado fiscal, por ser um chamariz para pensionistas franceses, suecos ou finlandeses. E à medida que o número de beneficiários foi crescendo, subiu também o tom das críticas.

O programa motiva a desconfiança de países como a Suécia e a Finlândia, que olham para as regras portuguesas não como um meio de garantir justiça fiscal, mas como um mero instrumento de concorrência fiscal agressiva. A tal ponto que a Finlândia, depois de negociar um novo acordo fiscal com Portugal para poder tributar os seus pensionistas, passou unilateralmente a tributar essas pensões pelo facto de Lisboa estar há mais de dois anos para ratificar as novas regras.

Dez mil casas

Para beneficiar do regime é preciso estar em Portugal durante mais de 183 dias, seguidos ou interpolados durante um período de 12 meses. Não é necessário comprar casa, mas muitos fizeram esse investimento, já que, segundo os dados do fisco, há 10.737 casas que têm como donos residentes não-habituais.

Para obter o estatuto é preciso não ter residido em Portugal nos cinco anos anteriores, mas os controlos realizados pelo fisco durante anos não garantiam a inexistência de “falsos não residentes”. Algo que, depois de ser identificado, levou o fisco a mudar as rotinas, passando a verificar se o contribuinte aparece nalguma declaração fiscal como tendo obtido rendimentos em Portugal (em especial rendimento de trabalho dependente) antes do pedido de adesão, e se nos cinco anos anteriores foi titular de um imóvel para habitação que tenha beneficiado de uma isenção de IMT e/ou IMI.

O Governo diz que para avaliar o regime não basta olhar para a contabilidade da despesa fiscal que lhe está associada (calculada em 350 milhões de euros em 2016), mas para o conjunto da receita conseguida pela presença desses 27 mil beneficiários, nomeadamente o que se consegue captar em IVA, IMI e IMT.