PSP usa critérios étnicos para avaliar risco de zonas urbanas sensíveis
Em Portugal não é permitido recolher dados sobre etnias ou raças. Directiva da PSP de 2006 tem a "composição étnico-social" de um bairro como um dos critérios para avaliar o seu grau de risco. Secretária de Estado diz que está desactualizada. Mas o PÚBLICO teve acesso a relatórios de 2016 da PSP que o usam. Especialistas alertam: associar determinadas etnias a perigo é racismo. Amnistia Internacional diz que é profiling.
A PSP utiliza critérios étnicos na avaliação do grau de risco de zonas urbanas sensíveis. Há até diagnósticos do Comando Metropolitano de Lisboa com uma grelha onde, entre outros subcritérios, a PSP classifica o grau de risco de um bairro consoante a sua “composição étnico-social” é “estável, instável ou problemática”.
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A PSP utiliza critérios étnicos na avaliação do grau de risco de zonas urbanas sensíveis. Há até diagnósticos do Comando Metropolitano de Lisboa com uma grelha onde, entre outros subcritérios, a PSP classifica o grau de risco de um bairro consoante a sua “composição étnico-social” é “estável, instável ou problemática”.
Esta grelha consta de uma directiva confidencial da Direcção Nacional da PSP, à qual o PÚBLICO teve acesso, em que se definem os “bairros problemáticos”, hoje designados por zonas urbanas sensíveis (ZUS). No critério “características da população” incluem-se vários subcritérios como a “composição étnico-social”, a densidade populacional do bairro e a existência de residentes com antecedentes criminais.
A Direcção Nacional da PSP não quis esclarecer nada sobre este tema, nem dizer se o documento – a directiva estratégica n.º 16 de 2006 – ainda serve de base à definição de ZUS. Trata-se, segundo fontes da polícia, de um documento interno que não é partilhado entre os agentes no terreno, mas por chefias.
Ao PÚBLICO a secretária de Estado Adjunta e da Administração Interna, Isabel Oneto, responsável pela pasta, diz que nos relatórios enviados ao seu gabinete não existe qualquer “referência a características étnico-sociais”. É peremptória: “Esse não é um elemento na identificação do risco do bairro. Temos bairros com diversas etnias que não são problemáticos nem estão classificados como tal." A existir alguma referência à etnia ou origem racial dos habitantes, é “para identificar [o bairro] na perspectiva da inserção”, afirmou.
Apesar dos vários pedidos de clarificação sobre se esta directiva ou os critérios de definição de ZUS tinham sido revogados, o gabinete de Isabel Oneto não deu resposta. Em entrevista ao PÚBLICO, a governante disse que aquele subcritério tinha sido anulado, mas apenas indicou uma orientação da Presidência do Conselho de Ministro de 2006 onde se recomenda “que as fontes oficiais, nomeadamente as forças de segurança e policiais”, “evitem revelar, nas suas comunicações” sobre operações “a nacionalidade, a etnia, a religião ou a situação documental” dos grupos e pessoas.
Porém, o PÚBLICO teve acesso a três relatórios de avaliação de ZUS de 2016 em que são referidos aspectos sobre a composição étnica da população. Num deles usa-se mesmo a grelha definida pela directiva de 2006 para classificar o grau de risco de bairros num concelho a Norte de Lisboa onde habitam pessoas de etnia cigana, de origem africana e caucasiana, como referem. Os três bairros obtiveram a classificação de Zona Verde (ou seja, grau de risco baixo ou pouco provável) e no subcritério em causa “estável”.
Na avaliação de bairros de outros concelhos a ascendência é associada a características negativas. O avaliador escreve: o bairro é conotado como ZUS "pelo simples facto de ser um bairro social, maioritariamente habitado por cidadãos, na sua grande maioria africanos e ciganos, os quais são conotados com comportamentos desviantes". Sobre outro bairro lê-se: um “dos problemas é a coabitação entre os moradores do bairro (população cigana e a população cabo-verdiana), pois nota-se muita falta de civismo, o que por vezes leva a alguns conflitos, uma vez que estes não se respeitam e não têm normas de boa vivência em sociedade”.
O tema das ZUS voltou ao debate depois dos acontecimentos no bairro da Jamaica, Seixal, em que a actuação da polícia foi fortemente criticada – um vídeo tornou-se viral, e deu origem a um inquérito da própria PSP e da Inspecção-Geral da Administração Interna (IGAI) e a acusações de racismo sobre a actuação dos agentes.
As análises às ZUS servem sobretudo para os comandantes de divisão ajustarem a estratégia ao terreno, segundo uma fonte da PSP que se quis manter anónima. “São como os serviços de informação, toda a gente sabe que é recolhida informação mas a maior parte não conhece depois o resultado."
No Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) as ZUS são, de resto, um dos itens referidos em número de acções ou de elementos policiais destacados. Por exemplo, no último disponível, de 2017, refere-se que foram desencadeadas 21.919 acções, com 59.570 elementos.
Num dos RASI, as ZUS aparecem definidas como áreas concentradas nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto, “espaços que mantêm a sua forte relevância no aparelho securitário, não apenas pela concentração de grupos e de actividades criminosas, mas também por se assumirem como territórios eficazes para a mobilização de indivíduos com predisposição significativa a acções de subversão contra a autoridade do Estado”. Mais: “Estas áreas comportam diversos factores de risco que, pela sua matriz criminosa, justificam uma abordagem, a título preventivo, no quadro de ameaças à segurança interna."
A problemática dos dados e do “profiling”
Em Portugal, a recolha de dados étnico-raciais não é permitida e tem gerado debates com grande polémica. O Governo criou em 2017 um grupo de trabalho para discutir a inclusão no próximo Censos 2021 de uma pergunta que permita aferir a composição étnico-racial da população. Isto é feito em alguns países como Estados Unidos, Reino Unido e Brasil e usada para desenhar políticas públicas com o objectivo de corrigir desigualdades. Os opositores argumentam com os riscos da má utilização dos dados, dizendo que podem reforçar a estigmatização.
Para a secretária de Estado, nos relatórios a mera “referência às comunidades que vivem num bairro entre outras não significa que ele seja imediatamente classificado como problemático". E acrescenta: "São, aliás, inúmeras as zonas do país com comunidades de várias etnias que não estão referenciadas como sensíveis.”
No caso da grelha usada pela PSP o que está em causa, sublinham ao PÚBLICO vários especialistas, é o facto de uma “composição étnico-social” poder ser classificada de “problemática”. O director da Amnistia Internacional em Portugal, Pedro Neto, afirma mesmo que isso “configura discriminação e profiling” – a identificação de um suspeito pelas autoridades apenas pelas suas características étnico-raciais.
A directiva da PSP não explica como é feita a caracterização em termos concretos, o que o faz questionar: “Referem-se a estrangeiros? A migrantes? A descendentes? Pior, pessoas de diferentes etnias da caucasiana e pobres (étnico-social)? Se assim for, fica institucionalizada a discriminação racial e económica por parte do Estado."
Por outro lado, acrescenta, uma área com ocorrências de criminalidade “não tem necessariamente” de ser “um bairro inteiro, nem as pessoas que lá vivem têm necessariamente” actividades criminosas. “A polícia não pode fazer profiling de grupo ou profiling de zona habitacional pois isso configura discriminação.”
Em Janeiro de 2018, a IGAI enviou uma recomendação à PSP, à GNR e ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras a lembrar que as forças policiais não podem identificar pessoas, e sobretudo menores, só por estarem em local considerado sensível se não houver suspeitas fundadas de crime.
Paulo Rodrigues, presidente da Associação Sindical dos Profissionais de Polícia (ASPP), diz que não conhece a directiva mas não tem “dúvidas de que quem criou esse critério" pretenderia ajudar os agentes a resolver conflitos e não a estigmatizar. “Não sei o que é uma composição étnico-social problemática”, responde – aliás, nem a secretária de Estado nem a direcção da PSP clarificaram este conceito ao PÚBLICO. “Mas na abordagem para resolver conflitos é muito importante sabermos se estamos a lidar com cidadãos de etnia cigana, cabo-verdiana. Por exemplo, se houver um confronto, é útil saber que se for falar com a pessoa mais velha de etnia cigana podemos resolver conflitos.” No entanto, admite que o critério possa ser revisto.
Racismo institucional?
Autora do estudo e livro Esquadra de Polícia (Fundação Francisco Manuel dos Santos), a antropóloga Susana Durão sublinha que é “curioso que o critério étnico-social seja identificado para esses bairros”, mas “não para pensar a sociedade portuguesa em geral”. O que a leva a afirmar que “parece existir uma identificação estreita entre grupos étnico-sociais, imigração e pobreza”.
A antropóloga lembra as limitações na União Europeia quanto à identificação étnica: “O problema é a aglomeração semântica de todas essas categorias numa mescla que identifica pobreza com crime, violência, exclusão e necessidade de controlo. Porque não se usa essa categoria para caracterizar as classes médias das Avenidas Novas de Lisboa ou da Foz no Porto? São menos étnicos?”
O geógrafo João Ferrão – que foi secretário de Estado do Ordenamento do Território e das Cidades entre 2005-2009 – acha que o problema não é, de facto, a referência à composição étnica de uma ZUS, pois isso faz parte da caracterização sócio-demográfica e revela-se útil se existir “convívio de comunidades com culturas muito diferentes” onde “podem surgir problemas que se resolvem com mediadores”. Nesse sentido, saber as características da população ajuda “a definir a intervenção mais adequada numa óptica preventiva, de mudança e de transformação e não de repressão”. “O problema é como se cola um objectivo a uma classificação que vai de estável a problemática. Uma composição étnico-social problemática para quem?”
Isso “naturaliza a ideia de que existe uma relação entre características de determinadas etnias e grau de perigosidade”, diz. “Estamos a fazer uma hierarquia entre várias comunidades, as que são perigosas e as que não são por serem mais parecidas com o perfil dominante em Portugal. Vamos dizer ‘todos os brancos comportam-se desta forma?’ É impensável! Fazer essa relação alimenta na opinião pública ideias erradas e aumenta a ideia de exclusão social, de discriminação.” Não tem dúvidas de que a consequência pode ser de “racismo institucional”: “A própria acção pública que deveria combater estes estereótipos está a legitimar e a dar visibilidade a essas relações”, conclui.
Também para o sociólogo Paulo Machado, investigador do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), coordenador de um estudo que avaliou a situação de segurança nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto em 2006, a pedido do Governo, aquela classificação faz “uma associação de causa-efeito entre a existência de minorias étnicas e a concentração e a existência de problemas com segurança”.
O critério estigmatiza, afirma o ex-director-geral da Administração Interna entre 2009 e 2011, e as forças de segurança quando associam “ascendência étnica a perigosidade” baseiam-se “nesse mesmo procedimento cognitivo diferenciador”. Lembra: “A formação nas Escolas de Formação Policial contraria esta assunção porque se baseia em critérios humanistas, princípios jurídicos e legais. Seria uma desgraça para a gestão da segurança pública em Portugal misturar preconceito com orientação técnico-policial.”