Falta uma escola transformadora

Há escolas que lutam por estas crianças — oferecem pequeno-almoço e lanche ou visitas de estudo que os pais não podem pagar —; outras há que baixam os braços, vencidas.

Foto
Adriano Miranda

Marco o número e atendem do outro lado. Apresento-me: — Boa tarde, o meu nome é Bárbara Wong, estou a ligar do jornal PÚBLICO. Pode passar-me à direcção, por favor?

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Marco o número e atendem do outro lado. Apresento-me: — Boa tarde, o meu nome é Bárbara Wong, estou a ligar do jornal PÚBLICO. Pode passar-me à direcção, por favor?

— Só um momento — diz a voz que pousa o auscultador, arrasta a cadeira, levanta-se, dá dois passos, bate à porta e informa: — É do jornal PÚBLICO para falar com a direcção.

— Olha, olha, era o que faltava! — exclama uma voz enquanto outra dá uma forte gargalhada. A telefonista fecha a porta, dá dois passos, regressa à cadeira que arrasta depois de se sentar, pega no auscultador e diz-me numa voz pausada: — Elas não podem atender.

— Diga-lhes que as notícias são boas! —​ peço-lhe. Quando se liga de um jornal para uma escola, as direcções ficam em sobressalto. A senhora pousa o auscultador, arrasta a cadeira, dá dois passos, bate à porta e informa. Desta vez, não percebo o que dizem porque conversam em voz baixa. A escola é pequena, isolada e a telefonista há-de ser recepcionista ou secretária, calculo enquanto espero. Ouço-a a regressar ao seu posto, levanta o auscultador: — Elas querem saber do que se trata.

— A escola ficou bem colocada nos rankings — resumo, guardando para a directora o resto da conversa. Se chegarmos à fala, irei substituir a palavra mal-amada por “lista ordenada”, lembrar-lhe que fazemos isto todos os anos, que gostamos de saber como são as escolas porque são mais do que um número numa tabela. Ouço a senhora voltar, arrastar a cadeira para se sentar, agarrar no auscultador para me informar numa sua voz calma: — Elas dizem que não falam. Para ligar noutro dia.

Da escola do meio do Atlântico, salto para a do meio de Lisboa. Mando email para o director com toda a informação, conforme me é pedido pela telefonista, aguardo por resposta. Depois começo a telefonar de manhã e à tarde. Condoída, a telefonista decide pelo director um dia e uma hora para me receber, que ele não fala por telefone. Ainda tento negociar: “Minha senhora, imagine que o director da escola de Freixo de Espada à Cinta decide que só fala comigo presencialmente, meto-me num comboio?” Acabamos por não falar. As notícias também eram boas.

Curiosamente, são as escolas a quem tenho de dar más notícias que falam. Melhor, que desabafam sobre as crianças desmotivadas, sobre os jovens que não gostam da escola. Porquê? Porque trazem uma carga pesada de casa, porque são filhos do rendimento mínimo e não conseguem sonhar para lá disso; porque foram rejeitados pelas famílias, vivem institucionalizados e numa grande revolta; porque o desemprego dos pais repercute-se nas suas vidas. Alguns desaparecem, vão para a emigração; outros chegam pela primeira vez, sem saber a língua. Numa escola recebem-se dezenas de brasileiros, que devem vir a fugir de Bolsonaro, e filhos de emigrantes em Inglaterra, que devem vir a fugir do “Brexit”, calcula uma directora.

Há escolas que lutam por estas crianças — oferecem pequeno-almoço e lanche ou visitas de estudo que os pais não podem pagar —; outras há que baixam os braços, vencidas, que empurram para o Ministério da Educação as responsabilidades de colocar outros profissionais como psicólogos e assistentes sociais no espaço escolar, mas também mais auxiliares de educação.

A tutela tem alguma dificuldade em ouvir escolas que estão longe. As escolas precisam de dinheiro, mas precisam também de mais autonomia. A flexibilidade curricular é muito bem-vinda e pode servir para que as direcções em conjunto com as comunidades façam diferente. Uma comunidade no interior ou num bairro periférico deve ter o direito a projectar a sua escola — os pais têm de ser chamados a participar, assim como as autarquias, as associações e outros —, sem esquecer que, no final do ano, há contas a prestar. Os resultados podem ser convertidos em rankings, mas, mais importante do que isso, devem reflectir a transformação que a escola tem a obrigação de fazer na vida dos seus alunos, todos, porque nenhum deve ficar para trás.