Wagner Moura e Seu Jorge dão a cara por Marighella, um filme de resistência no Brasil de ontem e de hoje
Biografia do activista comunista brasileiro morto pelo regime em 1969, Marighella teve estreia mundial em Berlim e promete polarizar o Brasil quando (se?) estrear. No festival alemão, realizador e actor disseram que o seu filme não é uma reacção a Bolsonaro, mas que é uma história de resistência.
“Passaram 50 anos e nada mudou,” disse Wagner Moura, com lágrimas nos olhos. “Não é de loucos? Carlos Marighella, um homem negro, foi morto a tiro num carro; cinquenta anos depois, Marielle Franco, uma mulher negra, foi morta a tiro num carro, provavelmente por agentes da polícia...” Foi um jornalista belga que apontou a semelhança a Moura, o actor de Tropa de Elite, Praia do Futuro e Narcos, agora passado a realizador com Marighella, que teve estreia mundial na selecção oficial de Berlim. “A maneira como o estado trata os revolucionários e os criminosos continua a ser a mesma. É de loucos como a situação é tão parecida.”
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“Passaram 50 anos e nada mudou,” disse Wagner Moura, com lágrimas nos olhos. “Não é de loucos? Carlos Marighella, um homem negro, foi morto a tiro num carro; cinquenta anos depois, Marielle Franco, uma mulher negra, foi morta a tiro num carro, provavelmente por agentes da polícia...” Foi um jornalista belga que apontou a semelhança a Moura, o actor de Tropa de Elite, Praia do Futuro e Narcos, agora passado a realizador com Marighella, que teve estreia mundial na selecção oficial de Berlim. “A maneira como o estado trata os revolucionários e os criminosos continua a ser a mesma. É de loucos como a situação é tão parecida.”
Não é preciso ir mais longe para perceber o que se joga em Marighella, baseado na biografia escrita por Mário Magalhães do baiano Carlos Marighella (1911-1969), engenheiro, poeta, escritor, deputado, comunista, revolucionário que pegou em armas contra a ditadura militar brasileira, que o proclamou “inimigo público n.º1” e o matou em 1969 numa emboscada. “Se estudar a história do fascismo e dos governos totalitários, a primeira coisa que muda é a semântica: as pessoas começam a alterar o significado das palavras,” explica Moura. “Agora diz-se que o golpe de Estado de 1964 não foi um golpe de Estado mas sim um 'movimento'. Ou que a ditadura brasileira não foi tão má como a do Chile ou a da Argentina...”
Contudo, ao contrário do que o timing possa fazer parecer, o filme não foi pensado em resposta à eleição do ultradireitista Jair Bolsonaro: “Começámos a trabalhar no projecto em 2012, estávamos no mandato de Dilma Rousseff,” diz o realizador. “Rodámos com Michel Temer no poder, e vamos estrear sob Bolsonaro. Mas o filme é maior que qualquer governo. É um filme sobre pessoas que decidiram fazer algo contra um Estado violento, e penso que os cidadãos têm não só um dever como uma obrigação de resistir a isso.”
Moura está preparado para que Marighella seja um “pára-raios” no actual momento político brasileiro, esperando ataques de ambos os lados do sistema político. Da direita, por razões óbvias; da esquerda, porque “a esquerda é chata,” ri-se. “Isto é uma longa-metragem, eles vão queixar-se que não foi bem assim, que as coisas não aconteceram assim ou assado… Fiz imensa pesquisa, mas há muitas personagens que são amálgamas de gente que lutou realmente com Marighella. Acima de tudo, era preciso que este filme fosse um filme. Para fazer documentário já há muitos sobre o Marighella.”
Estreia promissora
Na sua passagem-relâmpago pela capital alemã, Moura trouxe consigo o seu herói: Seu Jorge, o multifacetado cantor e actor, que atraiu todas as atenções quando entrou na sala desta roda de imprensa mundial. “Eu queria Seu Jorge para interpretar Marighella porque ele tem uma luz que brilha e atrai toda a gente.” E, contudo, Seu Jorge (que, tal como Moura, nasceu nos anos 1970 e apenas viveu os últimos anos da ditadura) confessa que a primeira vez que ouviu falar dele foi numa canção de Caetano Veloso (Um comunista): “A minha geração não ouvia falar dele – e quando começamos a estudá-lo, descobrimos uma parte muito importante da história brasileira de que nunca ouvimos falar. A luta dele é a minha luta também: ele preocupava-se com as pessoas, onde quer que elas estejam.”
Moura, contudo, não quis fazer uma hagiografia da personagem, mesmo que reconheça que há algo de mártir na história de Carlos Marighella: “Os mártires são mártires porque perdem. Queria que ele fosse o mais real possível, um ser humano que também tinha medo, longe da ideia do super-guerrilheiro que nunca tem medo ou do kamikaze. Acredito que ele tinha noção dos erros que cometeu. Não preciso de defender Marighella”, continuou. “O que me interessa é descrever a sua complexidade, tal como também tentei que a personagem do polícia político que o persegue fosse complexa — é capaz de torturar e matar ladrões e políticos, mas também de dizer ao homem da CIA que não é para os EUA que ele trabalha. Quis que ela fosse interpretada pelo Bruno Gagliasso porque é um actor bonito, com olhos azuis, longe do estereótipo do polícia político.”
Para estreia na realização, Marighella é um filme muito confiante, nervoso, ágil, sempre em movimento. “Falei para a minha equipa para pensar que esse filme seria os irmãos Dardenne fazendo um filme de acção,” ri-se Moura. “Não me sinto nada realizador, nem tenho grande cultura cinematográfica – mas estive muito bem rodeado e foi tudo muito intuitivo. Houve um momento em que pensei que podia ter feito um filme só com três personagens e ia ser muito mais fácil!” Inicialmente, o actor nem sequer iria realizar o filme, reconheceu: "Ia apenas produzir, e depois de repente decidi correr o risco, sair da minha zona de conforto. Era importante dar a cara. Tenho muito respeito pelas pessoas que dão a cara e aceitam as consequências disso. Marighella não se quis acomodar e foi por isso que foi morto pelo Estado numa rua de São Paulo.” A última palavra é de Seu Jorge: “A imagem de Marighella é uma imagem de resistência, e há agora uma febre pela resistência. E esta é uma história de resistência.”