Terra Nova, um mar de paisagens de cortar a respiração
Ilha isolada e agreste, a "Terra dos Bacalhaus", no Canadá, tão formosa quanto pouco povoada, é um dos destinos favoritos dos viajantes mais radicais. Não admira: é de uma beleza natural transcendente.
Foram três semanas de sensações fortes, numa Terra que ainda é Nova - certamente outro mundo, a milhas do turismo de massas. Mas não deu para visitar as capelas todas, que neste caso são santuários naturais, nem nada que se pareça. Newfoundland, entre nós mais conhecida como Terra dos Bacalhaus, é uma ilha enorme, do tipo continental: nada menos de 108. 860 km2, o que faz dela a 16.ª maior do mundo. É um bocado como a Islândia do outro lado do Atlântico, ou uma derivação insular da Noruega. Na verdade, a Terra Nova é parte integrante do Canadá, de que constitui (junto com a faixa continental do Labrador) uma das dez províncias. Fica na ponta mais oriental da América do Norte, aquela mesma onde primeiro a Europa aportou - primeiro os vikings por volta do ano 1000, depois o veneziano Cabotto a soldo dos britânicos, em 1497, e, um par de anos depois, os portugueses Corto Real, que misteriosamente desapareceram em combate.
Descobriram uma ilha tão sólida e recortada que ganhou a alcunha de Rochedo. Um rochedo ultra-irregular, profunda e caprichosamente esculpido pelo mar e pelos icebergues. Por isso a infinidade de enseadas e baías, cabos e penínsulas é uma das imagens de marca da Terra Nova. O interior é igualmente bravio, mas porventura mais monótono: uma terra quase sempre encharcada, onde pouco ou nada cresce além de florestas boreais. Aqui mais densas, ali mais esparsas, são imensas manchas verdes salpicadas de lagoas e sapais. A agricultura é rara e muito circunscrita, mas nos meses de Verão as florestas estão carregadas de bagas suculentas e de flores de todas as cores.
Entre a grandeza transcendente dos fiordes e a aparição surreal dos icebergues, entre a inóspita beleza das fragas e o romântico abandono dos pantanais, a Terra Nova acena com um extraordinário ramalhete de encantos naturais. São paisagens de cortar a respiração, mas também com imensa vida lá dentro, uma vida que noutros lados já esmoreceu ou está em vias de extinção. Em toda a costa se embarca à procura de avistamentos, mesmo se em muitos recantos basta espreitar do alto das falésias para avistar baleias, golfinhos e uma infinidade de pássaros. Já na estrada - em qualquer estrada, a qualquer hora, mas sobretudo ao fim da tarde e ao princípio da noite -, é preciso conduzir com precaução redobrada, por causa dos animais que atravessam sem se anunciar, incluindo corvos, lobos e sobretudo renas, que são uma das principais fontes de acidentes mortais na ilha.
As estradas da Terra Nova são, de resto, tão únicas como inevitáveis. É preciso ter em conta que o povoamento da ilha se foi fazendo não em função da terra, mas dos bancos de bacalhau. Por isso a maior parte dos assentamentos ganhou nomes de localidades em Inglaterra, Irlanda, País Basco e Portugal. Por isso também a comunicação se concentrou no mar e só tardiamente a Terra Nova ganhou uma rede rodoviária centrada na nacional Transcanadense, que funciona como uma via rápida de ligação entre as pontas Leste e Oeste.
Tudo o resto são estradas secundárias que dela derivam para norte e para sul com destinos que depois raramente têm ligação entre si, mesmo quando as distâncias são curtas. As estradas são então incontornáveis, porque só de carro se atingem as principais atracções da ilha, o problema é que quase todas as ligações levam uma eternidade. Para onde quer que se vá convém sair abastecido de mantimentos e o depósito cheio. São as vicissitudes de viajar off the beaten track, largamente compensadas pelo mergulho na natureza, mas também pelo convívio com os “nativos” que esse tipo de percalços propicia.
A ilha pode ser enorme, mas é escassamente povoada. A população actual não chega ao meio milhão e quase metade está concentrada na capital São João da Terra Nova. São do género poucos, mas bons. É certamente gente rija e um bocado rústica, ciosamente independente - que só aceitou a bandeira do Canadá depois da Segunda Grande Guerra. Mas é também gente muito afável, que gosta de usufruir dos ainda raros contactos com forasteiros. É uma história que se repete seja nas cidades, seja em aldeias com meia dúzia de almas: basta sair do carro para tirar uma fotografia, ou abancar num miradouro a ver passar navios, que logo vem alguém dar as boas-vindas e dois dedos de conversa, rematados frequentemente com a oferta de uma boleia, ou de um quarto livre no anexo do quintal. A Terra Nova é também isso: um dos lugares mais hospitaleiros à face da América do Norte.
Oeste, a primeira opção
Não é desmerecer as outras, mas, se fosse para escolher uma das quatro regiões da Terra Nova, a primeira opção seria com certeza a região Oeste. É onde se encontra Gros Morne, a Montanha Solitária da cadeia Longe Rage que remata os Apalaches. Uma majestosa massa rochosa de topo raso, que se eleva a mais de 800 metros de altitude, amiúde talhada pelos glaciares durante a última Idade do Gelo. A designação de lagoa do Riacho Oeste faz algum sentido, uma vez que se trata de um fiorde de água doce. Na verdade, a terra abateu com o embate do gigante glaciar, mas recuperou quando ele derreteu, bloqueando a ligação com o mar. Já chamar lagoa de riacho a um colosso desta magnitude é seguramente um eufemismo.
A aproximação ao Western Brook Pond faz-se em crescendo de espanto - ou de wow sucessivos -, quando o trilho sulcado entre pântanos vai a cada curva desvelando o enorme lago e as montanhas entreabertas em fundo. Cerca de 45 minutos e três quilómetros depois, atinge-se o cais fluvial, onde se embarca em ferries de dois pisos, que mais parecem cascas de noz prestes a serem esmagadas pelos gigantes empedernidos entre os quais se prestam a serpentear. São 30km até ao fundo do lago, duas horas de trajecto que constitui certamente um dos mais originais passeios de barco à face da Terra, o mergulho num mundo arcaico e mágico, gloriosamente inalterado desde os primórdios da vida no planeta.
Mas a Montanha Solitária também se pode abordar noutra perspectiva, entrando pelas “traseiras”, que é como quem diz por terra, seguindo o trilho James Callaghan. Tem uma parte para caloiros: um troço de quatro quilómetros com encontros quase certos com perdizes, lebres e muitas escadas de madeira pelo meio. Isto até se chegar a uma plataforma meio pantanosa nas faldas da montanha, onde finalmente se percebe o muito que ainda falta até ao topo. É a parte do trilho só para montanhistas calejados, nove quilómetros de loop para cima e para baixo entre ravinas apertadas e quase a pique. As invejáveis fotografias disponíveis na Internet não mentem: quando o planalto não está coberto de chuva nem de nevoeiro (o que é a maior parte das vezes), as vistas lá de cima sobre o fiorde de Gros Morne são mesmo assombrosas.
Mas os encantos do maior Parque Nacional do Canadá Ocidental (1805 km2) estão longe de se reduzir ao fiorde, sobretudo quando no extremo sudoeste do mesmo parque se encontram as Tablelands. A paisagem é também montanhosa, mas tão estéril que mais parece um deserto. Estas montanhas são, na verdade, feitas de peridotito, uma camada de pedra empurrada das entranhas da Terra pela força das placas tectónicas. Seguir os trilhos de Tablelands é outra experiência forte, seja pela estranheza de pisar a matéria que cobre as camadas profundas do planeta, seja pelas raras e coloridas flores que milagrosamente vão despontando, resistindo à asfixia tóxica do peridotito.
Para além das montanhas, Gros Morne tem uma linha costeira fantástica, que oferece programa para vários dias. São as inesperadas praias de areias finas e dunas de Sally’s Cove, o enigmático sítio geológico de Green Point que emergiu das profundidades do oceano, os intrincados bosques de abetos de Berry Head, ou ainda as dramáticas falésias de Green Gardens. Pelo meio há vilas piscatórias como Rocky Harbour e Trout River, orgulhosas da sua bem preservada arquitectura vernacular. Falta mencionar L’Anse Aux Meadows, na ponta mais setentrional da ilha, primeiro assentamento europeu de que há notícia no Novo Mundo. Visitam-se os achados arqueológicos e uma reconstituição da aldeia viking, mas é preciso ter tempo e ser um ás do volante para lá chegar numa estrada em que as crateras são mais o asfalto.
Centro, uma súmula do melhor
Da parada de fiordes aos rios de salmões, das praias de areias finas às cascatas e lagoas, das aldeias piscatórias às peças de arquitectura insólita, a Região Centro é uma espécie de súmula do melhor da Terra Nova. Corresponde à maior divisão administrativa da ilha, mas quase tudo o que interessa encontra-se no terço setentrional, a começar na costa de Kittiwake, mais conhecida como Corredor dos Icebergues - esses dinossauros de gelo que remontam a 10 mil anos e vêm a flutuar desde a Gronelândia, na metade mais quente do ano.
Para tornar o espectáculo mais apelativo, o desfile de Leviatãs glaciares contracena com uma incrível profusão de baleias e de golfinhos, que aqui se habituaram a encontrar alimento. Quer dizer que é uma das zonas de maior fartura de bacalhau e, por isso, a costa de Kittiwake é um longo colar de aldeias e vilas piscatórias, onde todas as famílias têm pelo menos uma lancha de pesca artesanal. Cabe destacar as povoações que se foram espraiando por escolhos e ilhéus litorais, como Twillingate, com as suas casinhas coloridas aninhadas entre falésias abruptas, e Newtown, disseminada entre canais que justificam a alcunha de Veneza da Terra Nova. São verdadeiros postais de graça bucólica, mas a parada sobe ainda mais na ilha do Fogo, que fica ao largo, a meio caminho entre aquelas duas. Mais remota e desabrigada, a ilha do Fogo tem, por outro lado, vindo a coleccionar obras de arquitectura de vanguarda, que mais parecem obras de arte que lugares para habitar.
A costa ultra-recortada a norte dá lugar a uma sucessão de longas praias de areias brancas para leste, onde os nativos e o resto dos canadianos gostam de ir molhar os pés. A Estrada das Praias bordeja a Península de Eastport, contígua ao Parque Nacional da Terra Nova, um dos destinos de férias mais familiares da ilha. São 400 quilómetros quadrados de paisagem protegida, um mosaico dos principais ecossistemas da Terra Nova, mas num registo menos inóspito e mais hospitaleiro, incluindo parques de campismo e equipamentos desportivos.
Outro destino popular na Região Centro é o rio Exploits, que se alonga por 246 quilómetros e é o maior na ilha, sobretudo famoso por atrair a desova anual dos salmões do Atlântico. A novidade, que arrancou em finais dos anos 1980, foi o programa de desobstrução do rio e seus afluentes. Permitiu que a entrada de salmões crescesse dos quatro mil para os 33 mil exemplares - hoje já são menos, porque a passarada não demorou a aproveitar o brinde e a abancar nas margens do rio. O rio Exploits é uma atracção para pescadores, mas não só, quando o centro de interpretação de Grand Falls dispõe de um observatório subaquático onde se pode seguir os acrobáticos saltos dos salmões nas escadarias de pedra, talhadas para lhes facilitar a migração rio acima.
Leste e Avalon, no patamar do sublime
A Terra Nova é sempre agradável à beira-mar, mas nas margens da Península de Bonavista atinge largamente o patamar do sublime. É o extremo norte da Região Leste, um enorme cabeço rochoso fustigado/esculpido pelo oceano numa gloriosa sucessão de biombos fragosos, rendilhados e feéricos. É obrigatório destacar o trilho Skerwink, cinco quilómetros de montanha-russa pedonal, sempre nas alturas e à beira do abismo, onde o assombro se conjuga com vertigem e algum risco - até porque aqui não se questiona o bom senso dos visitantes, ou pelo menos ninguém está para arruinar a paisagem com placas a dizer-lhes onde pisar. Há nas redondezas trilhos menos trepidantes, mas nem por isso menos aprazíveis, incluindo aquele que contorna o lago e o centro urbano da cidade de Bonavista, mais os outros que daí conduzem ao Farol do Cabo e às vizinhas grutas abatidas de Dungeon.
As aldeias costeiras de Região Leste surgiram da pesca do bacalhau, como no resto da Terra Nova. Mas algumas floresceram acima da média no século XIX, acumulando um precioso património construído, hoje em boa parte preservado. Assim acontece com Bonavista, que conta uma centena de edifícios de Oitocentos, incluindo a Bridge House (1814), a mais antiga casa residencial da ilha, um par de igrejas clássicas e o supracitado farol, um dos mais pitorescos da ilha. Mais fotogénica ainda é Trinidade, o tipo de aldeia piscatória feita de casinhas semeadas à beira de uma enseada luminosa, que se tornou famosa por servir regularmente de cenário para filmes e séries de reconstituição histórica. Menção especial merece ainda Port Union, um raro vislumbre da Inglaterra industrial e única vila de raiz sindical na América do Norte.
Para quem tudo isto soa demasiado remoto ou mesmo alienígena, há sempre o consolo de St. John’s, a capital da Terra Nova. Um par de ruas paralelas ao porto concentram comércio, restauração e vida nocturna, iguais às das grandes cidades americanas. Mas não há arranha-céus e daí para cima são só casas residenciais de todas as cores, que lhes vale a alcunha de casas Jelly Bean (gelatina). Acolhedora e civilizada, mas inveteradamente provinciana, São João da Terra Nova tem a sua principal landmark já fora do perímetro urbano, em Signal Hill, a majestosa colina não habitada, à entrada da apertada baía onde a cidade assentou.
Basta, porém, descolar meia dúzia de quilómetros da mancha urbana e logo se volta a mergulhar no meio de nenhures. O sul da região de Avalon, coberto pelo chamado Irish Loop, é inclusive uma das zonas mais inóspitas da Terra Nova, havendo zonas tão estéreis que nem uma árvore lá cresce. Há, em contrapartida, fantásticos fósseis, inscritos nas paredes das rocha fustigadas pelo oceano em Mistaken Point. Para as descortinar convém primeiro visitar o centro de interpretação, um pavilhão envidraçado no meio de um casario singelo, outro dos muitos lugarejos que na Terra Nova respondem pelo nome de Portugal Cove.