O mundo vegetariano de João Alves foge de todos os fundamentalismos

No bairro lisboeta de Santos, um chef brasileiro abriu o Arkhe, um restaurante onde os vegetais são o centro de tudo, mas o queijo Serra da Estrela também tem espaço para brilhar.

Foto

Quando chegou a Lisboa, há cerca de ano e meio, João Ricardo Alves vinha com um objectivo: abrir um restaurante vegetariano despretensioso mas com uma cozinha que tivesse algum grau de sofisticação. Duas portuguesas que conhecera quando trabalhava em Bali tinham-lhe dito que Lisboa estava num bom momento e que fazia falta um restaurante assim.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Quando chegou a Lisboa, há cerca de ano e meio, João Ricardo Alves vinha com um objectivo: abrir um restaurante vegetariano despretensioso mas com uma cozinha que tivesse algum grau de sofisticação. Duas portuguesas que conhecera quando trabalhava em Bali tinham-lhe dito que Lisboa estava num bom momento e que fazia falta um restaurante assim.

Mas, precisamente porque a cidade estava num bom momento, as coisas revelaram-se mais complicadas do que João tinha imaginado. Os espaços eram caros (viu mais de trinta) e a realidade é que ninguém conhecia o seu trabalho aqui. Acabou por ser através do Instagram que se cruzou com o projecto A Sociedade, de Cláudia Villax, e surgiu a ideia de aí fazer um jantar para mostrar a sua cozinha.

Decidiram que se não houvesse dez inscrições, cancelariam. Houve 24, a sala ficou cheia, e ficaram pessoas em lista de espera. O interesse foi crescendo e acabaram por fazer doze jantares, adaptando o menu às diferentes estações do ano e respectivos ingredientes. João começou a acreditar que havia, de facto, espaço para a sua cozinha vegetariana – até porque muitas das pessoas que foram aos jantares não eram vegetarianas e gostaram do que provaram.

Foto
"Gnocchi" de abóbora assada

Durante esse período, teve algumas ofertas de emprego “para restaurantes muito interessantes” mas em que lhe pediam sempre para cozinhar pelo menos peixe e marisco. “Eu falei sempre ‘isso não sou eu’ e recusei projectos bons para me manter fiel ao que faço.” E o que faz é o resultado de um percurso que o levou do Brasil, onde nasceu em 1984, na cidade de São Paulo, até à Ásia, sempre a querer aprender mais e a descobrir coisas novas. O resultado desses anos está hoje nos pratos que faz e no espaço que acaba de abrir em Santos, o Arkhe, palavra que em grego antigo significa origem, início.

Tudo começou pela vontade de João aprender mais a fundo sobre as bases da cozinha francesa. Foi isso que o levou a um primeiro estágio em França – imaginara-o num restaurante com estrela Michelin, mas acabou por se ver num restaurante no campo, onde acabou por se surpreender e aprender coisas fundamentais.

Ao fim de pouco tempo, puseram-no a tratar do peixe e da carne. “Como compravam animais inteiros, era preciso cortá-los e desossá-los”, recorda. Durante um período achou que essa tarefa lhe permitia aprender muito, mas a certa altura começou a sentir-se incomodado. “Lidar com um animal que acaba de ser abatido, que ainda está quente, é muito brutal.” Quando, nos tempos livres, ia correr, via rebanhos de ovelhas e ia-se apercebendo que “cada uma tem a sua personalidade, uma é mais tímida, a outra mais agressiva, a outra mais amável”. E questionava-se cada vez mais sobre esse processo de transformação de um ser vivo num pedaço de carne para pôr num prato.

Foto

Ao mesmo tempo, questionava-se também sobre o ritmo e a exigência de um restaurante com estrela Michelin e a falta de qualidade de vida de muitas das pessoas que se dedicavam a um projecto desses. Deixou de comer carne e apercebeu-se, ao fim de dois meses, que se sentia muito bem, com energia suficiente para aguentar as muitas horas de trabalho diário. Percebeu, então, que o seu caminho seria por aí e trocou França por um restaurante vegetariano em Brighton, Inglaterra.

Iniciou então outra aprendizagem. Se era verdade que o restaurante era vegetariano, por outro lado tinha uma cozinha muito baseada em fritos e gordura, que não agradava a João. “Queria uma coisa mais refinada.” Ficou oito meses e seguiu para Itália, onde estagiou no Joia (uma estrela Michelin), em Milão.

Aprendeu muito aí e ficou bastante tempo até voltar a partir, desta vez para a Ásia – Índia, primeiro, onde, para além de fazer ioga, descobriu uma outra cozinha, tão complexa que, diz, não se atreve a fazer um caril; e por fim Bali, onde trabalhou no Hotel Five Elements, sempre em cozinha vegetariana e vegan.

Foi este percurso que o trouxe até Portugal (o pai é de Trás-os-Montes) e, depois de muita procura, a este espaço no Boqueirão Duro (o antigo restaurante Pachamama), de paredes brancas, mesas de madeira, algumas plantas verdes e, sobretudo, um ambiente simpático e acolhedor de uma equipa que se percebe estar motivada (uma das coisas que aprendeu em Bali foi que uma cozinha onde o chef grita e atira com coisas não funciona, por isso aqui todos os tratam por João e não há gritos).

Foto
"Blini" de trigo sarraceno

Outra das características do Arkhe é que, sendo vegetariano (e não vegan, já que usa queijo, ovos, manteiga), não é fundamentalista. “Não quero ser 100% de nada”, garante João. “Se houver uma coisa que faça sentido, trago para o projecto.” O mais importante numa cozinha, acredita, é que dê prazer. E se o prazer, como nos ensina a cozinha francesa, for um puré de batata finalizado com uma manteiga de qualidade, então é exactamente isso que vamos encontrar aqui, servido com um creme de couve-flor assada, cogumelos e um molho bordelaise feito com uma redução de legumes assados.

Os gnocchi de abóbora assada, por exemplo, vêm com queijo Serra da Estrela, que João se lembra de ver no frigorífico quando o pai o levava de Portugal e que aprendeu a gostar quando percebeu que o cheiro intenso era, afinal, de algo muito bom. E as texturas de pastinaca têm ovo a baixa temperatura, além dos cogumelos shitake e do caldo de cebola queimada.

Nas entradas, a panissa (uma espécie de polenta com grão de bico) servida com maionese de miso e gengibre, pickles de rabanete e rábano forte é obrigatória, mas as opções passam também por creme de topinambur e café ou salada de funcho com queijo fermentado de castanha de caju, azeitona preta, laranja e sésamo negro ou ainda blini de trigo sarraceno com pesto de avelã, creme de raiz de aipo, maçã verde e sementes de mostarda.

Foto
Chocolate, pêra, creme de café

Nas sobremesas, as propostas são um crème brûlée de castanha com dióspiro, crumble de gengibre e redução de café e uma mousse de chocolate e pêra, com praliné de amêndoas, redução de laranja e tomilho.

A carta de vinhos é relativamente curta e apresenta alguns vinhos naturais e biodinâmicos (que João conheceu através da vizinha mercearia Comida Independente), mas, mais uma vez, “sem fundamentalismos”. A preocupação foi ter vinhos mais leves porque, explica, “os mais encorpados vão bem sobretudo com carnes e assados” – e esse é um mundo que fica bem longe do Arkhe.