O R&B de quarto de Sallim
A ver o que acontece traz presença, substância e clareza pop à música da cantora e compositora da Cafetra. R&B de quarto, canções inteiras, uma voz que não falha – para ouvir dia 28 na ZDB, e depois na Casa da Cultura de Setúbal e no Maus Hábitos.
Antes de ir para estúdio gravar o novo disco, Francisca Salema tinha o computador a abarrotar de demos, com todas as variações possíveis e imaginárias das canções. Fazer este segundo álbum, A ver o que acontece, “foi uma cena bué frenética”, diz, já ali para os lados do obsessivo – maldito seja o perfeccionismo, mas a verdade é que, sem ele, provavelmente não teríamos Primavera Nova, Mais Ninguém ou A Pensar em Ti, canções exemplares de joalharia pop, com tudo no sítio.
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Antes de ir para estúdio gravar o novo disco, Francisca Salema tinha o computador a abarrotar de demos, com todas as variações possíveis e imaginárias das canções. Fazer este segundo álbum, A ver o que acontece, “foi uma cena bué frenética”, diz, já ali para os lados do obsessivo – maldito seja o perfeccionismo, mas a verdade é que, sem ele, provavelmente não teríamos Primavera Nova, Mais Ninguém ou A Pensar em Ti, canções exemplares de joalharia pop, com tudo no sítio.
Lançado em finais de Janeiro pela editora Cafetra e com apresentação oficial no próximo dia 28 na ZDB, em Lisboa, num concerto com banda – a 2 de Março é a vez da Casa Cultura em Setúbal e dia 7 do Maus Hábitos, no Porto –, A ver o que acontece anda há muito na cabeça de Francisca Salema, a cantora e compositora de 24 anos mais conhecida por Sallim. A composição do disco, que contou com o apoio da Fundação GDA, começou logo quando terminou Isula (2016), o álbum de estreia. “Ao longo de 2016 e 2017 fiz as canções todas e comecei a fazer os arranjos com o Lourenço [Crespo, colega da Cafetra, músico em nome próprio e dos Iguanas], que fez comigo todos os arranjos do disco, nos teclados, baixo e guitarra”, explica Sallim. Os beats, feitos de raiz por ambos, contaram com a supervisão e reconhecida sabedoria de Leonardo Bindilatti (Rabu Mazda, Iguanas, Putas Bêbadas), outro membro da família Cafetra e produtor do primeiro álbum de Sallim, papel que desta vez ficou a cargo de Eduardo Vinhas do estúdio Golden Pony.
Sallim foi, aliás, a última pessoa a gravar na sede original deste estúdio, referência fundamental na música portuguesa independente, que teve de mudar de morada para dar lugar a um hotel, ou não estivéssemos no circo-turístico-vale-tudo que é hoje Lisboa. “Quando gravei no Pony senti que não era um sítio qualquer. Muitos músicos passaram por lá e trabalhar com o Eduardo foi brutal”, conta a compositora, que teve de pós-produzir o disco na casa de Eduardo Vinhas, num estúdio improvisado no seu hall de entrada. “Foi tudo muito diferente do Isula, em que eu não estive presente nas misturas. Aqui fez todo o sentido acompanhar o processo do início ao fim.” Sallim sentiu que este segundo álbum era mais importante, “mais exigente”. E que, com ele, chegou ao lugar onde queria estar: o lugar das canções inteiras, indie pop corpulento mas sem perder a graciosidade dos registos anteriores. “Com o Isula aceitava mais as canções como um devaneio. Com este disco houve muito mais o trabalho de ver o que a canção precisa, ao nível da estrutura, das melodias, da articulação entre as várias partes.”
Sallim quis “dar às canções o que elas pedem”. E elas pediram “clareza”, para que “todo o puzzle” pudesse ser ouvido. Missão cumprida logo no pontapé de saída do disco – os teclados de Primavera Nova irradiam na nossa cara, qual luz do sol ao acordar, vitaminados pela braguesa de Maria Reis (Pega Monstro) e pela flauta de Mariana Pita (Moxila), com tudo bem selado pela voz aurífera, seguríssima, de Sallim. Em Isula percebemos que estava aqui uma voz capaz de embelezar o vazio, mas agora é next level. Dá cor, volume e detalhe a cada instrumento, a cada harmonia. Benditos sejam o R&B e a pop americana, dieta regular de Sallim. “A voz é o meu instrumento e um dos objectivos era dar protagonismo à voz. Toda a cena das harmonias e dos arranjos vocais da pop e do R&B foram muito importantes para mim”, explica a cantora e compositora, sublinhando a influência de Ariana Grande, SZA e Kehlani. “O Lourenço [Crespo] também me contagiou com o lado mais científico de fazer canções, de saber quem são os produtores da música pop e de ir ouvir entrevistas com eles. É uma cena meio nerd.”
Exercício de auto-análise
Enquanto Isula era composto por canções aeriformes ao sabor do mar, mais atmosférico e introvertido, algo pálido e monótono, este novo álbum traz presença, substância, nitidez – ouçamos o R&B de quarto, de membrana folk, de Não Vale a Pena Pensar, ou os ecos dos girl groups dos anos 60, em actualização millennial, da maravilhosa e viciante A Pensar em Ti, uma cover de Kridinhux que faz todo o sentido neste disco (e à qual Sallim acrescentou uma linha de voz sacada a Mariah Carey, diz-nos). A ver o que acontece deixa um travo dulcífico duradouro, sim, mas também há alguns cantos escuros, canções entre a luz e a melancolia (Quarto Sem Coisas, Bom Pra Mim). São, quase sempre, canções “com feeling”, canções bem esculpidas. Tem de ser assim – como diz o tio B, “as canções têm de ser tão fortes que mesmo quando tu falhas, elas não falham”. “O B Fachada disse-me esta frase numa conversa e ficou-me bué na cabeça. O B é uma grande influência para mim, para todos nós na Cafetra”, assinala Sallim.
E se há canção que não falha neste disco é Mais Ninguém, voz transbordante e country pop em versão minimal, herdeira dos primeiros discos de Taylor Swift e de Kacey Musgraves, esta última outra das referências destacadas por Sallim. “O Eduardo [Vinhas] pede para lhe mostrarmos músicas que nos influenciam e eu mostrei-lhe o disco da Kacey Musgraves”, refere Sallim. “Claro que há uma distância gigante entre mim e essas pessoas, e a maneira como fazemos música não tem nada a ver, mas tudo o que consomes acaba por ser integrado no que fazes, naturalmente.” Mesmo a música brasileira, “de Gal Costa a Rita Lee”, que pigmenta levemente canções como Outra Vez.
A ver o que acontece é “um disco mais pop, mais polido, mais directo”, e também as letras são “mais assumidas”. “Foi muito importante não me distanciar dessa cena de cantar sobre mim, sobre as minhas coisas, sobre as minhas relações amorosas e com os outros. Mas enquanto no Isula era tudo mais abstracto, simbólico, aqui é mais directo e narrativo”, observa a autora. É auto-biográfico, sim, “auto-crítico” também, às voltas com a ansiedade, a insegurança e a própria angústia de escrever canções: sigamos as palavras e os teclados-bálsamo de Hoje Fico em Casa, a ressacar da preguiça, das festas, das dúvidas existenciais. Para ela, fazer música é isso mesmo, “um exercício de auto-análise”. “Há uma necessidade de expressar coisas que vou acumulando.” Sallim só sabe falar quando canta, diz-nos em Bom Pra Mim, e por isso é que se põe “mesmo” dentro das canções. Como em O Dia Todo, que faz a ponte com o primeiro álbum. “Ajuda-me a lembrar porque é que comecei a fazer música: esse compromisso de despejar um bocado de tudo.”