Por onde andaste este ano, Berlinale?
Marighella, do brasileiro Wagner Moura, merecia a presença a concurso; em vez disso, tivemos La Paranza dei Bambini, enésima variação sobre o filme de mafiosos, e o caso Elisa y Marcela. Felizmente que Berlim 2019 nos trouxe Angela Schanelec, Denis Côté, Nadav Lapid.
O problema não é que a competição da Berlinale 2019 tenha sido fraca. Disso queixamo-nos nós todos há muitos anos e continuamos a encontrar filmes de primeira grandeza no festival. (Parece que há outro, So Long My Son, o épico do chinês Wang Xiaoshuai, ao qual ainda voltaremos.)
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O problema não é que a competição da Berlinale 2019 tenha sido fraca. Disso queixamo-nos nós todos há muitos anos e continuamos a encontrar filmes de primeira grandeza no festival. (Parece que há outro, So Long My Son, o épico do chinês Wang Xiaoshuai, ao qual ainda voltaremos.)
Sabemos desde sempre que a posição estratégica de Berlim durante a Guerra Fria praticamente “obrigou” à politização da Berlinale – Dieter Kosslick, o director cessante, lembrava que a primeira edição que dirigiu foi a de 2002, seis meses após o 11 de Setembro – e que nenhum outro festival de cinema parece implicar-se tanto como este nas ramificações destas questões. Mas demasiadas vezes o certame se portou de maneira algo condescendente, colocando a concurso filmes que não mereciam a chamada apenas para preencher uma qualquer quota.
Foi o caso, este ano, do desastre Elisa y Marcela, produção Netflix assinada pela espanhola Isabel Coixet, cineasta que começou muito bem e se tem vindo progressivamente a afundar na total irrelevância (o que levanta uma questão paralela: o Netflix não se estará a tornar, mais do que uma possibilidade de exposição para filmes independentes que de outro modo não se veriam, uma espécie de “escoadouro” para filmes que não têm mercado para existir?).
E enquanto Elisa y Marcela, um filme realizado por uma mulher sobre um casal lésbico pioneiro na Espanha dos anos 1900, entrava na competição – pronto, é tema, é concurso, mesmo que seja uma desgraça de filme –, The Souvenir, de Joanna Hogg, era relegado para a paralela Panorama. Admissivelmente, já que The Souvenir não é nada do outro mundo, e a sua adopção pela crítica anglo-americana, que se prostrou aos pés desta memória, é claramente efeito de “filme da moda” (Hogg não é uma estreante e o seu nome tem alguma reputação crítica), mas não faria má figura em competição em qualquer grande festival.
A mesma questão se aplica a La Paranza dei Bambini, adaptação do romance de Roberto Saviano Os Meninos da Camorra. Saviano, ele próprio, colaborou no argumento, mas Claudio Giovannesi refugia-se nos lugares-comuns todos do filme de mafiosos, apresentando como única novidade o facto de ter em adolescentes que ainda não chegaram à maioridade os seus “heróis”. Há a textura napolitana dada pela câmara móvel, mas fora isso fica a sensação de um enorme e previsível bocejo, de um filme de Máfia que se aplica competentemente e sem personalidade a seguir uma fórmula mais do que batida. (Gomorra, claro, era outra coisa.)
E se La Paranza dei Bambini tem honras de concurso, o murro no estômago que é Marighella, primeira realização do actor Wagner Moura, tem estreia mundial… fora de concurso. Biografia dos últimos meses do escritor e político Carlos Marighella, tornado pela ditadura militar no inimigo público nº 1 do Brasil, é um filme claramente “de tema”, extremamente actual face à eleição de Jair Bolsonaro: Marighella é violento, sim, chega até a ser gráfico na sua descrição das torturas e do ódio quase cego das autoridades contra os “comunistas” que acreditam num outro Brasil possível, num Brasil diferente. Mas, apesar de uma duração claramente excessiva, é um filme nervoso, ágil, que capta o medo e a raiva de ver um país de futuro a ser puxado para o passado, e que tem um trunfo extraordinário no carisma quase místico de Seu Jorge, perfeito no papel deste homem que se cansou de acreditar na democracia, partiu para a luta armada e se entregou ao martírio por uma causa maior do que ele.
É um filme de tema, sim, mas tem cinema lá dentro, cinema que precisa de um ecrã para brilhar. Cinema que não percebemos por que não estava a concurso. Ainda bem que houve Angela Schanelec, Denis Côté, Nadav Lapid (e, a alguma distância, Wang Quan'an com o interessante Öndög; sem esquecer a "entrada tardia" So Long My Son, já depois do fecho deste texto). Que o júri encabeçado por Juliette Binoche os saiba assim reconhecer, ao final da tarde de sábado.