João Onofre diz-nos luzes, câmara, acção

Reunindo vídeos, performances, fotografias e desenhos, a mostra antológica que João Onofre apresenta na Culturgest transporta o espectador para um universo em que arte e a música pop, a acção e a sedução convivem com humor e empatia. Numa tensão que nos fala do falhanço, da finitude, do tempo, do amor e da morte.

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nuno ferreira santos

João Onofre (Lisboa, 1976) percorre as galerias da Culturgest, em Lisboa, atento à montagem dos vídeos, à iluminação, ao som. Ultimam-se os arranjos finais de Once in a Life Time [Repeat], exposição antológica do artista português que se foca nos últimos quinze anos de trabalho, incluindo vídeos, desenhos, som, escultura. De uma das salas, levemente iluminada, escutam-se os acordes eléctricos e ondulantes de uma guitarra (é Norberto Lobo que a dedilha). De outra sala, alguém parece tentar repetir o popularíssimo refrão de I Want To Know What Love Is, dos lacrimejantes Foreigner, banda anglo-americana de rock FM. Sem sucesso, pois é rapidamente interrompido. Como? No ecrã, um vídeo projectado responde à interrogação: um grupo de gospel interpreta a canção, acompanhado por um quarteto musical, enquanto uma equipa mista de râguebi se entretém num peculiar ritual. Cada membro tenta cantar o refrão antes de ser placado por outro membro. Apetece dizer: música e acção. Este vídeo inédito, produzido para a exposição, intitula-se Untitled (zoetrope) e, numa síntese tão ruidosa quanto elegante, anuncia ideias que introduzem o visitante à exposição: performance, música pop(ular), acção, falhanço, repetição. Não a resumem, mas desenham uma entrada ou, até mesmo, uma série de aléas que nos conduzem a outras obras. E, inevitavelmente, a um percurso e à possibilidade de um retrato.

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Untitled (Zoetrope). Foi concebida para a exposição e reúne um grupo de gospel, um quarteto musical e uma equipa mista de râguebi. O falhanço e a repetição manifestam-se, com humor, neste trabalho em que os jogadores tentam cantar a frase que dá o título a I Want To Know What Love Is dos Foreigner

O espectro da performance

Com formação em pintura pela Faculdade de Belas-Artes de Lisboa e um mestrado na Goldsmiths College, em Londres, João Onofre – actualmente professor na primeira instituição de ensino – iniciou o seu percurso nos finais dos anos 90. Participou neste período em importantes exposições de grupo e afirmar-se-ia na década seguinte, contruindo, desde então, um dos percursos mais internacionais da arte portuguesa. Entre individuais e colectivas, num total de 250 exposições, o seu trabalho circula e tem circulado por toda a Europa, em lugares tão significativos como o Palais de Tokyo de Paris e no Norte da América. São vinte anos de actividade em que o vídeo se salienta e sobre os quais Once in a Life Time [Repeat] surge como oportunidade para uma pergunta: as questões que em 2000 ou em 2001 inquietavam João Onofre continuam a ser a mesmas?

“Ao desenhar esta exposição com o curador [Delfim Sardo], dei-me conta da existência de vários temas que sempre me interessaram”, considera. “Isso tornou-se mais óbvio. Por exemplo, o espectro da performance. Percorre a exposição toda. Num vídeo [Believe (levitaton in the studio), de 2002], delego a um mágico o seu número de magia. É ele que o executa, e trago isso para o meu trabalho. No vídeo novo, isso também se verifica. Mesmo nos desenhos, há um lado performativo porque o resultado final reflecte o processo e põe-no à mostra, como acontece em Skull”.

Este trabalho consiste num fax em papel térmico com a frase Everything disappears, que pelo facto de ser exposta, virá a desaparecer sob o olhar do espectador. Da tautologia e da auto-reflexividade, a que não são alheias a influência da ironia crítica do conceptualismo, Onofre desloca-se para outro tópico. “A criação de um espaço para que algo aconteça. As obras começam todas com um guião conceptual que me proponho seguir, mas com um sentido de indeterminação. O resultado nunca é previsível. Coloco as circunstâncias para que algo aconteça, mas não determino. Não sei exactamente com que imagem ou som vou ficar”.

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Runnig Dry. Nesta série de desenhos (2005-2007), a frase escrita vai-se desvanecendo pelo uso da caneta que os realiza. Evidencia-se o interesse de Onofre pela tautogia, pela cumplicidade entre o que é representado e o processo de representação. Também aqui há uma performance

Entre os trabalhos que “ilustram” esta abordagem contam-se um trabalho seminal, Untitled (vulture in the studio), vídeo em que vemos, literalmente, um abutre à solta no estúdio do artista, e Box sized DIE featuring..., escultura de 2008, no interior da qual uma banda de death-metal toca até acabar o ar. A peça, que lida com os conceitos de metáfora e literalidade, é também uma performance musical (assim foi apresentada várias vezes no passado) de duração imprevista e que pode ser testemunhada hoje e a 17 de Maio à entrada da Culturgest. Já agora: o concerto está a cargo da banda portuguesa Holocausto Canibal.

O que a música esconde

A imponderabilidade das interacções humanas, o insucesso ou o logro que por vezes a as caracterizam continuam a fascinar João Onofre. Pense-se na presença de Untitled (L’Eclisse), apropriação do jogo de mãos que Monica Vitti e Alain Delon mostram no filme O Eclipse, de Michelangelo Antonioni, ou nessa incapacidade de dizer ou conhecer aquilo que o amor é em Untitled (zoetrope). A fragilidade da condição humana, mas também a sua resistência a respostas definitivas, admitindo a finitude e o falhanço, envolvem, com um humor sóbrio, a exposição. E a ligar as peças está a música pop, também ela a regressar, como se num loop, a ser interpretada, a ser cantada.

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Um dos percursos mais internacionais da arte portuguesa: entre individuais e colectivas, num total de 250 exposições, o trabalho de João Onofre tem circulado por toda a Europa, em lugares tão significativos como o Palais de Tokyo de Paris, e pelo Norte da América Nuno Ferreira Santos

“A música pop vem do domínio público e cultural, do exterior e invade o meu espaço privado, o atelier. Não tenho qualquer ideia romântica do artista, do artista que está longe da realidade”.

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Untitled (vulture in the studio). Neste vídeo vemos um abutre à solta no estúdio do artista.Poder-se-ia dizer que a música pop, tantas vezes escutada e acolhida por Onofre no seu trabalho, toma a forma daquele abutre, selvagem, desestabilizador e criativo. O artista concorda, não sem acrescentar que a pop é, sobretudo, interessante como ferramenta plástica e artística

Poder-se-ia dizer que a música pop, tantas vezes escutada e acolhida por Onofre toma a forma daquele abutre, selvagem, desestabilizador e criativo. O artista concorda, não sem acrescentar que ela é, sobretudo, interessante como ferramenta plástica e artística. “É uma forma de agarrar o espectador com algo que já faz parte do seu museu imaginário. De algum modo, fica também ele a pertencer um pouco à obra. Esse é o privilégio de usar a pop ou coisas do domínio popular. Mas entendo a música tal como entendo Bruce Nauman. São coisas sobre as quais posso trabalhar. Não é tanto uma apropriação, mas um uso. Os Kraftwerk, que cito em Instrumental Version, ou o Nauman são matérias iguais. Ou o Tony Smith [artista minimalista que Onofre cita em Box sized DIE featuring...] e uma banda de metal.  É assim que as entendo, quase como ready-mades que trabalho posteriormente, num contexto de pós-produção”.

A relação com a música pop não se reduz, todavia, ao esquema dos meios e dos fins. O gosto, o entusiasmo e o prazer animam o fazer de João Onofre. É um melómano que, confidencia-nos, ouve em repeat o mesmo tema vários dias seguidos, senão semanas. Foi assim que chegou a uma das obras mais surpreendentes da exposição, uma peça sonora composta de segmentos das gravações em estúdio de Carlos Paredes. Editadas em contínuo, dão-nos a ouvir um outro movimento perpétuo.

“Fui ouvindo por prazer e depois fui pensando no trabalho. E descobri que o que realmente me afectava eram respirações, não o virtuosismo da execução. Não era tanta a forma, mas a actuação que ele punha ao vivo quando gravava”.  Conversou com a viúva do músico que lhe fez uma revelação: Carlos Parede não gostava nada de ouvir essas respirações, considerava-as um erro. “Pelo contrário, para mim eram muito interessantes. Continha, a pulsão vital daqueles temas. Só com aquelas respirações pôde haver aquela interpretação. Mas devo sublinhar que nem sempre o gosto é importante. Trabalho também com a música ou com as canções para desvelar qualquer coisa que está nelas latente. Como a ideia de duração interminável no vídeo em que utilizo o sucesso pop La Nuit n’en Finit Plus, de Petula Clark, e até no Carlos Paredes, em que as respirações não são assim tão óbvias”.

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Vox. De 2015, é um dos trabalhos mais poéticos de João Onofre e, porventura um dos que melhor acentua a importância da acção no trabalho do artista. O artifício é revelado, mas a dança da música de Norberto Lobo - os acordes de guitarra no tema Eu Amo - leva-nos a uma viagem circular sobre uma falésia na costa portuguesa

Que a imagem possa seduzir

Enfatize-se de novo: João Onofre não faz qualquer distinção entre uma suposta cultura erudita, evocada nas referências às vanguardas do seculo XX, a artistas como Sol LeWitt, John Baldessari, Bruce Nauman, a teóricos como Nicolas Bourriaud, e uma cultura pop ou de massas em que cabem Bonnie “Prince” Billy, Petula Clark, Carlos Paredes, Norberto Lobo, os Beach Boys (que ecoam num vídeo em que um paraquedista tenta manter um equilíbrio impossível) ou o cinema. Curiosamente, a citação à sétima arte surge apenas no trabalho que remete para O Eclipse. De resto, outras peças em que Onofre dialoga com a memória do cinema não estão presentes. Por exemplo, Thomas Dekker. an interview, elaborada e surpreendente referência A Cidade dos Malditos de John Carpenter, ou Ghost, com referências a Le Voyage dans la Lune, de Geoge Mèliés, e a David Lynch. Não será pertinente intuir a influência mais genérica do cinema em certos planos, enquadramentos, efeitos? A influência de um ponto de vista cinemático que provoca um efeito emocional sobre o espectador?

“Sim, isso está lá. Gosto que a imagem possa seduzir, tenho a pretensão de englobar o espectador na obra. Isso acontece, julgo, até nos desenhos monocromáticos nos quais inscrevi fragmentos de letras de canções pop ou rock. Enquanto as tentamos ver ou reconhecer, a partir das nossas memórias musicais, reflectimo-nos naquelas superfícies. Convocam-nos, enquanto tentamos decifrar o que está ali, vemo-nos ao espelho”.

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Casting. Um dos trabalhos seminais de João Onofre, de 2000, mostra um conjunto de adolescentes a reproduzir a comovente exortação que encerra Stromboli (1949), de Roberto Rossellini De novo o falhanço ou o erro, mas agora sem qualquer humor, como perda

Mas é nos vídeos em que essa sedução, quase hipnótica, melhor se manifesta. De duração breve, com uma circularidade quase imperceptível, facilmente imobilizam o espectador. Veja-se Untitled (I see a Darkness), com a luz a queimar o ecrã à medida que a interpretação da canção de Bonnie Prince Billy, por duas crianças de 11 ou 12 anos, caminha para o fim. Ou Vox, de 2015, em que os acordes de guitarra de Norberto Lobo, no tema Eu Amo, nos levam a uma viagem circular sobre uma falésia na costa portuguesa. “É um trabalho com um grande rigor formal em termos de cor e textura”, diz Onofre. “Os crescendos e os diminuendos da música correspondem aos movimentos da câmara. A premissa é muito simples. Há uma relação entre a imagem e a música, que chamaria de afectiva. É um filme que se foca nesse domínio”.

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São vinte anos de actividade em que o vídeo se salienta e sobre os quais Once in a Life Time [Repeat] surge como oportunidade para uma pergunta: as questões que em 2000 ou em 2001 inquietavam João Onofre continuam a ser a mesmas? nuno ferreira santos

Humor em vez de cinismo

Dir-se-ia que a obra de Onofre se tornou mais empática, aberta à emoção, sem aquele ponto de vista cínico ou mais intensamente irónico que existia por detrás de Casting, obra que Onofre apresentou há 18 anos na colectiva “Disseminações”, também na Culturgest. “Sim, concordo. Na primeira metade de 2000, talvez a ironia fosse mais importante para mim, talvez estivesse ainda influenciado por um certo pós-modernismo. Agora não. Gosto também que haja mais humor nas peças.  Produz mais sentido que a ironia, que para mim deixou de ser interessante. Com a elaboração dos projectos, ao integrar elementos da cultura popular, a minha posição foi-se tornando menos cínica, mais calorosa”.

A propósito, recorda Untitled (I see a Darkness), vídeo que encerra Once in a Life Time [Repeat]. “Há uma gravitas no contentamento daquelas crianças quando estão quase a concluir a interpretação do tema de que gosto muito. Mesmo se também sinto que há ali um sentimento perda”. Perda, falhanço, morte, amor, fracasso. Sobre Onofre, o curador Delfim Sardo perguntava-se se não estaríamos diante de um artista influenciado pelo romantismo. “Não sei se iria tão longe [risos]”, reage. “Posso dizer que me interessam questões como a duração e a finitude. Quero ver quanto tempo as pessoas, sejam músicos ou jogadores, aguentam numa acção. Ou o que é ver a mesma coisa de um modo circular, repetido. Quando olhamos para mesma imagem, ainda estarmos a ver o mesmo, do mesmo modo? A finitude é outro tema que gosto de explorar. Por exemplo na série de fotografias dos coveiros [Every gravedigger in Lisbon, de 2006, também patente na exposição]. Como represento a morte?  A minha tentativa, sabendo que era destinada a uma espécie de fracasso, foi fotografar as pessoas que directamente lidam com ela. Acabei por demonstrar que aqueles retratos nunca poderiam ser uma imagem da morte. Ao colocar-lhos os óculos escuros, quis sublinhar que era impossível fazer essa representação. Mas ao mesmo tempo retirei-lhes a identidade, criei um corpo social indistinto, que não tem nada de específico, a não ser que pensemos no título. No fundo, aquelas pessoas estão entre nós”. Como a morte.

Acção sem ficção

É difícil não pensar na morte diante de Untitled (N’en fnit plus), em que vemos uma adolescente cantar, a capella, o tema de Petula Clark numa antiga cela subterrânea da Inquisição. O efeito é hipnótico, vertiginoso, claustrofóbico ao ponto de não haver qualquer vestígio do loop: escutamos a rapariga na noite. Ressalta, entretanto, o rigor da composição e a qualidade cristalina das imagens, elementos de que Onofre não prescinde. “No nosso tempo, sendo as imagens em movimento tão altamente definidas, um dos caminhos possíveis seria trabalhar com a baixa resolução, mas isso não seria adequado para o meu trabalho, para as questões que quero colocar”. E acrescenta: “Se pensarmos na especificidade do vídeo utilizado pelos artistas visuais, eles sempre se preocuparam com a imagens. Quando fizeram performances, fizeram-nas para a câmaras, não para acontecerem apenas ao vivo. Sempre prestaram atenção aos enquadramentos e à luz, à matéria plástica, às possibilidades oferecidas pelo meio que era o vídeo”.

Vídeo e acção, não cinema e ficção. As distinções são importantes, esclarece. “Creio que o que faço indexa mais o trabalho à realidade. No cinema, a suspensão da descrença é muito própria, é essencial. No meu caso, não é tão evidente. Se reparamos, todas a minhas obras estão na esfera da acção, mais do que na representação ou da ficção. O fax está a desaparecer, os jogadores estão a fazer placagens, a banda de death-metal está a ficar sem ar, não está a representar a falta de ar. Por outro lado, revelo o artifício, a presença de acção, como acontece também na peça do Norberto Lobo. A origem do vento, que ameaça a sua performance, acaba por se revelada”.

A menção a Norberto Lobo é um bom mote para interrogar João Onofre sobre a possibilidade de se tornar músico. “Talvez um dia. Mas gosto de delegar acções. Isso garante autenticidade dos trabalhos. Se fosse eu cantar ou a tocar não teria interesse nenhum. Não sou um adolescente, canto mal, não sei tocar instrumentos. Mas, por outro lado, gosto que o conceito da peça esteja operativo somente com o som ou com a canção, que a obra se autonomize em termos sonoros. O conceito não se perde, fica a voz humana a cantar. Daí ter as canções de algumas obras na exposição, na condição de peças autónomas, para que as pessoas as possam ouvir”.

Não é músico, mas podemos considerá-los como autor dessas canções que se vão ouvindo nos corredores, que saem das salas, despertando memórias, associações, numa diversidade por vezes estonteante? “Sim, são trabalhos meu, sem dúvida nenhuma. Todas têm uma abordagem diferente. Podemos dizer que sou o autor de novas apresentações dessas músicas, que faço novas traduções dessas músicas. Entendo aqui a tradução como traição ao original e criação de algo novo. Desse modo, sim, sou o seu autor”.