Passado a cada mergulho
O cinema americano é, costumamos dizer, um cinema de acção. Isso não quis significar o mesmo ao longo dos anos. Hoje pode querer dizer efeitos especiais, manipulação digital, montagem alucinante, trepidação da câmara, fireworks. Outrora era um cinema que investia pouco na retórica, os heróis agiam e por aí se via ao que vinham, falavam pouco, eram duros. Mas as regras de um género cinematográfico podiam deixar entrever as tragédias gregas ou o teatro de Shakespeare. Etimologicamente drama que associamos ao teatro, à ficção, à representação, significa acção.
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O cinema americano é, costumamos dizer, um cinema de acção. Isso não quis significar o mesmo ao longo dos anos. Hoje pode querer dizer efeitos especiais, manipulação digital, montagem alucinante, trepidação da câmara, fireworks. Outrora era um cinema que investia pouco na retórica, os heróis agiam e por aí se via ao que vinham, falavam pouco, eram duros. Mas as regras de um género cinematográfico podiam deixar entrever as tragédias gregas ou o teatro de Shakespeare. Etimologicamente drama que associamos ao teatro, à ficção, à representação, significa acção.
Clint Eastwood, de 88 anos de idade, vê essa época com alguma nostalgia com certeza. E, no entanto, aceita mostrar a fragilidade visível da idade que o leva no plano da ficção a ser apetecível como “correio de droga” do cartel de Sinaloa. Mas se a imagem de duro se lhe colou desde a trilogia de Sergio Leone (Por um Punhado de Dólares, Por mais Alguns Dólares e O Bom, o Mau e o Vilão) e do primeiro “Dirty” Harry, A Fúria da Razão de Don Siegel, dois cineastas a quem Eastwood dedica o “oscarizado” Imperdoável, é justo perceber que abundam os retratos de personagens mais matizados, como acontece sob a direcção do mesmo Don Siegel, em Os Abutres Têm Fome e Ritual de Guerra, recentemente recriado em O Estranho que Nós Amamos de Sofia Coppola, e mesmo em filmes que ele próprio dirigiu, particularmente musicais (A última Canção, além de Bird – Fim do Sonho sobre Charlie Parker que dirigiu mas não interpretou ou Os Maridos de Elizabeth de Joshua Logan que apenas interpretou).
Agora em The Mule/ Correio de Droga faz de certa forma uma revisão de carreira, como Robert Redford em O cavalheiro Com Arma sob a direcção de David Lowery, e é muito curioso que paire sobre ambos a memória de um, actualmente quase esquecido pelo público, Don Siegel (O Cvalheiro Com Arma tem a presença tutelar de Ferro em brasa como Jorge Mourinha lembrou no Ípsilon de 3/1/19 e Correio de droga lembra o sempre permanente conflito da fronteira mexicana também abordado em Os Abutres Têm Fome, no original significativamente Two Mules for Sister Sara).
Mas desses anos 60/70 ocorreu-me a memória bem diferente de The Swimmer/Mergulho no passado de Frank Perrry, ainda curiosamente com sequências dirigidas por Sydney Pollack (não creditado no genérico), esse uma presença tutelar na carreira de Redford.
No filme, realizado por Perry logo depois do inicial David e Lisa sobre dois jovens em crise identitária numa instituição psiquiátrica, Burt Lancaster, que considerava este o melhor filme da sua carreira, surge igualmente numa grande fragilidade, unicamente em calção de banho em todas as cenas do filme em que percorre as piscinas dos vizinhos (invariavelmente vestidos à beira da água, com a excepção significativa do casal de idosos nudistas) como se se tratasse em continuidade de um rio chamado Lucinda, nome da esposa que nunca chega a aparecer. E nesse mágico ano de 1968 o filme contraria, em certo sentido, a lógica de acção do cinema americano e por isso se tornou um cult movie. A história de uma vida, a biografia imaginária da personagem Ned Merryl, surge dos diálogos à beira da piscina num percurso que começa com um sol radioso da manhã até chegar a um final de tarde chuvoso no portão trancado de uma casa inabitada. Porém a característica agida, física, do cinema americano está ainda assim presente neste filme diríamos esquisito, particularmente na cena dos cavalos onde encontra a antiga baby sitter da filha.
Não se fará talvez uma leitura completa de Correio de droga, como de O cavalheiro com arma, se não se compreender como este cinema narrativo que aparentemente só se ocupa de contar uma história (e “maioritariamente” verídica, e alheia, aliás curiosamente verificada pelo fact-checking de ambos os filmes em sites como o português polígrafo ou o americano historyvshollyood.com), pode ser habitado pela coerência de toda uma vida de actor, no duplo sentido daquele que interpreta na cena e daquele que age social ou politicamente, ou seja na vida activa, como a formulou Hannah Arendt.
Numa interessantíssima entrevista de 11/11/2018 no site emanuellevy.com Robert Redford, ele próprio conhecido pelas suas posições liberais, diz-se pouco confortável com um cinema que se queira político, preferindo simplesmente contar histórias, mas justifica a sua intervenção enquanto criador do festival de cinema independente de Sundance como uma forma de “be active”.
A psicanalista e teórica da linguagem franco-búlgara Julia Kristeva no livro em inglês publicado sobre Hannah Arendt tomou como título “vida é uma narrativa”, seguindo a lógica da pensadora alemã, mais além do labor biológico e do trabalho produtivo. Kristeva logo no início cita Arendt: “é como se certas pessoas possam estar tão expostas nas suas próprias vidas (e apenas nas suas vidas, não como pessoas!), que se tornam pontos de junção e objectivações concretas da vida”. Não podia talvez ser dito de melhor forma. Curiosamente a citação é extraída da correspondência publicada com o psiquiatra e filósofo Karl Jaspers, orientador da sua tese sobre Santo Agostinho.
Aliás Arendt teve sempre a biografia em alto apreço, do primeiro livro que ainda nos anos trinta começou a escrever, uma biografia sobre Rahel Varnhagen (1771-1814), uma judia cujos salões os berlinenses frequentavam e que Arendt considerava a “sua melhor amiga” apesar da distância no tempo, ao conjunto de curtas biografias de “Homens em tempos sombrios”, incluindo Walter Benjamin, cujo manuscrito sobre o conceito de história lhe confiara ao perceber o risco de não sobreviver ao nazismo e que Arendt considera um “pescador de pérolas”, e Isak Dinesen/Karen Blixen, aí numa tangente ao Robert Redford de África minha.
Correio de Droga, tal como O Cavalheiro com Arma, é menos sobre o envelhecimento que sobre o próprio tempo. O mergulho no passado que Clint Eastwood propõe mostra-nos um Earl Stone dedicado à floricultura e entusiasmado com exposições de flores e outros eventos que o levam a negligenciar a família. A paixão pelas flores, explica ele, é a de encontrar o momento em que cada uma delas é única, captada e exposta no seu esplendor. A vida humana ao contrário é um somatório que cria uma sensação de continuidade como no tempo que o cinema analógico criou na sucessão de fotogramas.
Quando a sua empresa vai à falência Stone regressa à família, mas apenas a neta parece perdoar o seu alheamento anterior. O que o protagonista mostra, como no filme de Redford, é que a vida deve ser vivida até à morte e em cada viagem, por assim dizer em cada mergulho, uma nova oportunidade se abre ou se encerra. O momento de redenção do filme surge quando Stone suspende a entrega que fazia, com risco pela ameaça de morte a cada desvio do cartel que o controla, para acompanhar a agonia da ex-mulher.
Ainda, como em O Cavalheiro com Arma, quando interrogado sobre a actividade que lhe permitiu uma visível recuperação financeira, é também com a confissão da verdade, em que a ex-mulher não acredita, que a ilude. Quando no final é apanhado e levado a tribunal é bastante clara a atenuante que a defesa propõe, que o velho homem já com as faculdades diminuídas teria sido usado pelo cartel da droga e verdadeiramente não seria culpado. Esta parece a disposição da família e das autoridades, no auditório, quando subitamente ele próprio se declara culpado e pronto a cumprir a pena que lhe compete. A prisão é o sinal da sua liberdade, da possibilidade de assumir o sentido da sua vida, de continuar vivo até morrer, no momento da colheita, como as flores que vai voltar a cultivar. É aí que o actor se torna o autor da sua vida, concretiza verdadeiramente o seu direito de autor.
No final do filme, Clint Eastwood aproxima-se da imortalidade, um conceito que ainda Hannah Arendt opunha a eternidade. Quando perguntam à sua personagem porque não parou antes o transporte de droga, quando já tinha dinheiro para comprar tudo o que quisesse, a sua resposta é avisada: “não podia comprar tempo”. A imortalidade é talvez o que fica do passado no futuro. O que (se) passou são momentos descontínuos, pérolas ou corais, que se podem reavaliar, como no paradigmático Milagre no Hudson, onde o sucesso passado tem que certificar-se como procedimento futuro depois de uma rigorosa investigação, ou perdoar, ao contrário do que sugere o título do filme que mereceu a Eastwood o primeiro oscar.
Realmente a família perdoa-o no exacto momento em que ele insiste em admitir a culpa e esse é o sinal de autoria de uma vida que não é a simples constatação biológica mas pode tornar-se verdadeiramente uma biografia, ou seja o fio condutor de momentos de vida, como aqueles “cinco minutos mais perigosos” que alguém de outra etnia identifica quando literalmente é assaltado pelos polícias como suspeito de um ilícito – cena irónica que deixa entrever que a ordem e a responsabilidade que o seu cinema parece procurar talvez não se possa reduzir simplesmente à aparência conservadora das suas posições públicas. Até porque não temos um mundo perfeito, outro título seu, que mereça ser contemplado em vez da acção necessária, mesmo que obviamente limitada ou parcial.