Agressores sentem-se impunes e inspirados por notícias de violência doméstica
Estudos recentes mostram que as notícias sobre violência doméstica, quando mal enquadradas, podem motivar potenciais agressores e desmotivar as vítimas de pedirem ajuda. O PÚBLICO conversou com vários especialistas que apontam algumas soluções.
“Mulher foi vítima”, “matou por ciúmes”, “vizinhança sabia e não fez nada”, “amava-a e não a queria ver com mais ninguém”, “desistiu da queixa” ou “caça ao homem”. As expressões repetem-se, com maior ou menor frequência, nas páginas de jornais e nas televisões nacionais para abordar o crime de violência doméstica. Com mais ou menos pormenores, os meios de comunicação social descrevem histórias de crimes de violência doméstica com o propósito de alertar para a sua prevenção e combate.
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“Mulher foi vítima”, “matou por ciúmes”, “vizinhança sabia e não fez nada”, “amava-a e não a queria ver com mais ninguém”, “desistiu da queixa” ou “caça ao homem”. As expressões repetem-se, com maior ou menor frequência, nas páginas de jornais e nas televisões nacionais para abordar o crime de violência doméstica. Com mais ou menos pormenores, os meios de comunicação social descrevem histórias de crimes de violência doméstica com o propósito de alertar para a sua prevenção e combate.
No entanto, um estudo recente publicado pela Entidade Reguladora da Comunicação Social (ERC) conclui que existe “pouco investimento na problematização deste fenómeno social”, bem como “rigor informativo” nas notícias, o que perpetua “estereótipos das relações de género na intimidade”.
Estará a comunicação social a contribuir para a sensação de impunidade dos agressores? As vítimas de violência doméstica sentem-se menos protegidas com a forma como os casos estão a ser noticiados? É relevante descrever como é que o agressor matou a vítima? Há mais agressões quando se noticiam casos de violência doméstica? A resposta parece ser transversal aos especialistas consultados pelo PÚBLICO: a comunicação social não está a cumprir o seu papel pedagógico e está a contribuir para o efeito de mimetização dos crimes.
“Os meios de comunicação social são uma caixa de ressonância”, contextualiza Dália Costa, socióloga e especialista em ciências criminais. A investigadora e co-coordenadora do Centro Interdisciplinar de Estudos de Género do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas de Lisboa alerta que “o modo como as notícias são transmitidas reforça aquele que é o objectivo dos agressores [exercer o seu poder sobre as vítimas]”. E isso acontece porque a generalidade das notícias fala em “pormenores sem acréscimo de valor informativo, recorre a figuras de estilo e usa vocábulos violentos”, concluiu um estudo da ERC apresentado em Novembro de 2018, Representações da Violência Doméstica nos Telejornais de Horário Nobre.
“Ninguém mata por amor”
“Um agressor (ou potencial agressor) que ouça alguém dizer ‘Ele fez aquilo por amor’ vai pensar: ‘Eu percebo, porque também amo muito a minha mulher.’ E esse tipo de raciocínio pode estimular uma agressão”, conta Ana Conduto. “Ninguém mata por amor. Ninguém bate por amor. E quando na comunicação social se comentam estes casos recorrendo a estes termos, está a prejudicar-se o combate a este crime.”
De acordo com as conclusões reflectidas no estudo, as fontes dominantes nestas notícias são os cidadãos comuns e as autoridades, que, reproduzem ora opiniões sobre a relação entre o agressor e a vítima, ora dão pormenores sobre os ferimentos ou sobre a arma do crime, dados que “não acrescentam valor informativo para a percepção do problema social de violência doméstica”. Ao fazer isso, contribui-se para associar “juízos de valor que reforçam estereótipos existentes e desculpabilizam o agressor”.
“Dizer que é um crime passional, que o agressor estava ‘com ciúmes’, mascara a sua dimensão estrutural”, afirma o estudo O Femicídio na Intimidade sob o Olhar dos Media publicado na revista brasileira Gênero & Direito. Ana Conduto, especialista em psicologia clínica e em ciências criminais, sustenta esta conclusão. “Há uma série de estereótipos que desta forma são perpetuados por culpa de todos nós.”
Uma visão partilhada por Carla Cerqueira, investigadora. Para a especialista, fazer um “enquadramento episódico” de casos concretos transmite a ideia de que “será um caso isolado”, tratando-o como um problema intersocial, e por isso como sendo “isolado, pontual e imprevisível”, o que faz “com que se tenha uma leitura social descontextualizada desta problemática que é um fenómeno social de uma violência de género”.
“Os agressores de violência na intimidade ao contactarem com notícias destes casos podem identificar-se com os motivos dos agressores que vêem retratados e reforçar a sua vontade de também cometer este crime, o que contribui para aumentar o medo das vítimas”, alerta Carla Cerqueira.
“Há estudos que já em 2010 concluíam que a cobertura noticiosa desta forma pode não só potenciar este contágio, mas também afectar a situação psicológica e de bem-estar das próprias vítimas”, aponta a investigadora. “Se só mostrarmos esse lado extremamente negativo, os agressores sentem que devido a todas as falhas do sistema conseguem cometer os crimes de forma impune e ao mesmo tempo as vítimas sentem-se desprotegidas e questionam se vale a pena pedir ajuda”, explica Carla Cerqueira. O efeito é conhecido como “efeito mimético” ou “de contágio”.
Em Espanha, um estudo analisou cerca de 4 mil notícias de femicídio na intimidade. Concluiu-se nos dias seguintes às notícias sobre violência doméstica aumentava a frequência do crime. “Ainda se está a tentar levantar essa questão, que poderá estar obviamente relacionada com o facto de se dar visibilidade, mas a forma como se faz a cobertura noticiosa neste tipo de temáticas pode, por um lado, contribuir para a consciencialização pública, num outro tipo de enquadramento, contribuir para espoletar reacções que culminem em mais crimes de femicídio.”
Denunciar apresentando alternativas
A solução passa por “articular e trazer vozes para a discussão”, afirma a investigadora. É importante “mostrar que as vítimas não estão desprotegidas e que há instituições quase silenciadas”. E isso deve ser feito sem deixar de “colocar na agenda as falhas do sistema”, mas explicando “como podem recorrer dessas decisões e onde podem procurar mais ajuda”. “Não é fácil”, reconhece. Mas aponta pequenas estratégias. “Em vez de culpabilizar e dizer que a ‘vizinhança sabia e não fez nada’, devemos esclarecer que ‘a vizinhança sabia e poderia ter denunciado, uma vez que se trata de um crime público’. Temos de responsabilizar a sociedade. E esse papel também passa pela comunicação”, vinca.
Mais do que números é importante “não tratar os casos como acontecimentos, mas apostar na discussão de políticas públicas vocacionadas para a prevenção e acompanhamento da violência doméstica”.
“Tem sido feito um esforço para caminhar no sentido do cumprimento do papel pedagógico que deve estar inerente à comunicação social, mas fazemos isso com base em poucos dados científicos”, conclui a socióloga Dália Costa. E essa, diz, é uma responsabilidade que deve partir das organizações. “A Justiça deveria ter um gabinete de comunicação sério e estruturado e que permitisse noticiar o que é adequado noticiar.” E acredita que o momento que se vive é basilar. “Está agora colocado na sociedade portuguesa o momento de resolver este problema. Não sei o que mais tem de acontecer de desgraça para que os vários organismos se organizem”, lamenta a socióloga. “A mudança é feita, não cai do céu.”
Notícia alterada às 19h de dia 14/02/2019: O estudo Representações da Violência Doméstica nos Telejornais de Horário Nobre foi realizado e publicado exclusivamente pela ERC e não conta com co-autoria, como erradamente estava descrito.