A crise de identidade do israelita em França, segundo Nadav Lapid

Eis o terceiro grande filme da competição de Berlim: Synonymes é um retrato febril de um homem em fuga que não se parece com mais nada. Como o esquivo Divino Amor, de Gabriel Mascaro, mostrado na secção paralela Panorama.

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Synonymes, de Nadav Lapid, aborda as contradições da identidade israelita DR

“Vocês não sabem a sorte que têm em ser franceses”, grita às tantas Yoav. Que não é francês mas quer à viva força sê-lo: chegado de Israel para fugir a um país que diz "estar condenado", procura reinventar-se como francês, com um ligeiro sotaque, uma gramática arcaica e um Larousse no bolso enquanto corre pelas ruas de Paris entoando ritualisticamente vocabulário gaulês. Sinónimos, que não são apenas sinónimos dentro de uma mesma língua, mas também uma estenografia emocional, um atalho para deixar o passado para trás e embrenhar-se no futuro. Mas e se o passado não deixa Yoav para trás? E que filme se pode tirar desta fuga em frente numa corda bamba de alto risco?

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“Vocês não sabem a sorte que têm em ser franceses”, grita às tantas Yoav. Que não é francês mas quer à viva força sê-lo: chegado de Israel para fugir a um país que diz "estar condenado", procura reinventar-se como francês, com um ligeiro sotaque, uma gramática arcaica e um Larousse no bolso enquanto corre pelas ruas de Paris entoando ritualisticamente vocabulário gaulês. Sinónimos, que não são apenas sinónimos dentro de uma mesma língua, mas também uma estenografia emocional, um atalho para deixar o passado para trás e embrenhar-se no futuro. Mas e se o passado não deixa Yoav para trás? E que filme se pode tirar desta fuga em frente numa corda bamba de alto risco?

Synonymes é a entrada do israelita Nadav Lapid na competição da Berlinale 2019 – carta de amor e ódio simultâneos à Israel natal e à França onde foi estudar, retrato de um contador de histórias que se mete de tal maneira pela toca do coelho que já não sabe exactamente o que é verdade ou o que é imaginado. Synonymes não tem absolutamente nada a ver com O Polícia (2011) e com The Kindergarten Teacher (2014, recentemente refeito nos EUA com Maggie Gyllenhaal), ao mesmo tempo que tem absolutamente tudo a ver com os dois filmes anteriores do cineasta – é o mesmo estudo de personagens encerradas na sua própria bolha, procurando escapar ao destino traçado e salvar alguma coisa (ou alguém) num mundo que não é propriamente simpático, mas correndo nesse processo o risco de perder a noção do mundo. Israel é um estado à beira de se devorar a si próprio – é aliás por isso que Yoav vem para Paris –, mas a França também está longe de ser a terra prometida.

Onde os filmes anteriores de Lapid (alvo de retrospectiva no Curtas Vila do Conde de 2018) optavam por um modo mais ou menos realista de contar a história, Synonymes ora remete para as parábolas no vazio dos Coen, ora para a fúria de viver do Truffaut dos primórdios, ora para o surrealismo escarninho do primeiro Godard; aqui Synonymes é Buster Keaton, ali o free cinema inglês, acolá Elia Suleiman. É um objecto que parece mudar de personalidade a cada dez minutos, que reivindica uma liberdade de filmar e de contar que está longe de ser normal sentir hoje em dia.

Rolo compressor que recusa revelar-se numa única visão, Synonymes completa com Répertoire des villes disparues, de Denis Côté, e Ich war zuhause, aber…, de Angela Schanelec, a “trindade” dos grandes filmes singulares a concurso em Berlim 2019, à qual se deve juntar a provocação Der Goldene Handschuh, de Fatih Akin – momentos de cinema profundamente divisivos mas dispostos a correr riscos e que não se parecem com mais nada.

Terá de se dizer que Divino Amor também não se parece com mais nada. A nova ficção do pernambucano Gabriel Mascaro, mostrada na paralela Panorama, substitui a base documental de Ventos de Agosto e Boi Néon por um arremedo de ficção científica utópica/distópica: estamos 20 anos no futuro, num Brasil apaziguado, burocratizado, uma sociedade digitalizada por um benevolente Big Brother.

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Joana, a heroína (Dira Paes), é uma burocrata nos serviços notariais que pertence à seita evangélica Divino Amor (muito néon, ajuda espiritual em drive-through de McDonald’s, a ambiência rave de Matrix), e que começa a ver a sua fé a esboroar-se quando, por mais que tente, não consegue engravidar do marido infértil. Até que o milagre acontece – mas e se for, realmente, um milagre?

O problema deste filme estilizado e estiloso (confirmando o brasileiro como criador de imagens genuinamente talentoso) é que não dá verdadeiramente para perceber se Mascaro está a fazer uma astuta sátira da religião organizada como ópio do povo ou antes a levantar questões genuínas sobre amor e fé (que estão, aliás, longe de ser tratadas com condescendência). O facto de se creditarem cinco argumentistas (entre os quais Marcelo Gomes, de Joaquim) e quatro montadores sugere que talvez nem o realizador tenha conseguido decidir (Mascaro confessou na sessão oficial de apresentação ainda estar a descobrir o filme que tinha feito).

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A Rosa Azul de Novalis, de Gustavo Vinagre DR

Não será por Divino Amor não nos convencer completamente que vamos desistir de Gabriel Mascaro. Mas também aquém das expectativas ficou o conterrâneo Gustavo Vinagre, que venceu o Indielisboa no ano passado com Lembro Mais dos Corvos. A Rosa Azul de Novalis (exibida na secção Forum), co-realizado com o seu habitual braço direito Rodrigo Carneiro, é o “reverso da medalha”, aplicando o mesmo dispositivo de testemunho filmado/encenado; em Lembro Mais dos Corvos era a transsexual Julia Katharine frente à câmara, aqui é o intelectual gay paulista Marcelo Diorio. Mas onde o outro filme trazia uma verdade nascida da própria experiência de vida de Júlia que transcendia a encenação, em A Rosa Azul de Novalis tudo é encenação, provocação, pose; é um filme muito menos interessante, e muito mais artificial, sobre outro tipo de “divino amor”, que se refugia exclusivamente num nicho algo narcisista.