MP deixa cair acusações de tortura e racismo em processo da Esquadra de Alfragide

Alegações finais estão a decorrer nesta terça-feira. Dos 17 agentes da PSP, pelo menos sete estão acusados de ofensas à integridade física. Agente que disparou shotgun, João Nunes, mantém acusação de vários crimes à ofensa à integridade.

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MIGUEL A. LOPES

O procurador do Ministério Público (MP), Manuel das Dores, deixou cair as acusações de racismo e de tortura contra 17 agentes da Esquadra de Alfragide, que estão a ser julgados no Tribunal de Sintra.

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O procurador do Ministério Público (MP), Manuel das Dores, deixou cair as acusações de racismo e de tortura contra 17 agentes da Esquadra de Alfragide, que estão a ser julgados no Tribunal de Sintra.

Segundo as suas alegações também só ficaram provados crimes praticados por dez agentes. 

Nas alegações finais do julgamento que decorreram nesta terça-feira, sobre factos que aconteceram há quatro anos, o procurador manteve a acusação a pelo menos sete polícias pelos crimes de ofensas à integridade física. Neste grupo está o agente que disparou a shotgun, João Nunes. Está acusado de três crimes de ofensa à integridade física, um de falsificação agravada e outro de falsificação, um crime de sequestro e um crime de injúria.

Manuel das Dores disse que não ficou provado em sede de julgamento que as lesões sofridas pelos jovens na esquadra a 5 de Fevereiro de 2015 tenham sido suficientemente graves para configurar o crime de tortura. “Não estamos na presença de tal grau de severidade, era preciso mais, que as acusações estivessem mais suportadas nas lesões que apresentam”. Também disse não ter ficado provado que as injúrias proferidas se enquadrem no crime de ódio racial. 

João Nunes e outros seis arguidos que participaram na detenção de Bruno Lopes estão acusados de sequestro — André de Castro e Silva, André Quesado, Fábio Moura, Gonçalo Sousa, Renato Fernandes, Paulo Santos. Todos estes agentes mais o agente Joel Machado e o então chefe da esquadra, Luís Anunciação, são ainda acusados de crimes de ofensa à integridade física. Luís Anunciação é acusado de falsificação de auto e injúrias e Arlindo Silva de injúrias. Não ficou completamente claro da leitura das alegações se o MP acusa mais algum agente ou quais foram todos os crimes que se mantiveram e que caíram. 

O magistrado não defendeu penas concretas a aplicar aos agentes relativamente aos quais manteve a acusação. 

No seu despacho de acusação, de Julho de 2017, o MP acusava vários agentes de terem proferido expressões como “pretos do c…”, “deviam morrer todos”, “a vossa raça devia ser exterminada”. Em tribunal, vários dos ofendidos referiram que estas expressões tinham sido proferidas por agentes da PSP, mas o procurador considerou que não foram atribuídas aos mesmos agentes que o MP referiu no seu despacho de acusação e que estas acusações não ficaram provadas. 

O MP deixou também cair todas as acusações a um dos arguidos, a quem no despacho não é imputado nenhum facto.

Manuel das Dores deixou ainda explícito que a tese de tentativa de invasão da esquadra por seis jovens da Cova da Moura, defendida pelos agentes e apresentada como justificativa para a sua detenção, tinha legitimidade.

Disse que essa foi "a percepção da realidade" dos agentes — e que actuaram de acordo com ela — ao verem os jovens a aproximarem-se. Estes, calculou, vinham naturalmente indignados com o que se passara no bairro da Cova Moura — a detenção de Bruno Lopes. Por isso, o MP deixou cair a acusação de falsificação de auto - em que se diz que os jovens eram entre 15 a 20 e não seis - sobre este acontecimento. Os agentes encararam o grupo "como hostil", porque os jovens não vieram com “uma atitude de pura paz”, disse ainda Manuel das Dores.

Porém, nada justificou a violência descrita na sala de audiência pelas vítimas, disse, por isso acusou pelo menos sete agentes de ofensas à integridade física, incluindo o chefe da esquadra, e de injúrias — a um oitavo há ainda acusação de injúrias. 

Falou, nessa altura, das várias lesões dos seis jovens da Cova da Moura comprovadas pelos relatórios médicos, entre escoriações e traumatismos ou dentes partidos.

Também nada justificou os tiros disparados pelo agente João Nunes, afirmou o procurador. Um desses tiros atingiu um dos jovens numa perna.

Auto sobre detenção na Cova da Moura é falso, diz MP

A acusação inicial do MP divide-se em dois momentos: um primeiro, em que a 5 de Fevereiro de 2015 uma equipa da PSP vai à Cova da Moura fazer patrulhamento e detém Bruno Lopes, alegando que este tinha atirado pedras à carrinha da polícia — aí, um agente terá disparado dois tiros e atingido duas moradoras; um segundo momento, quando amigos deste jovem, entre eles membros da associação Moinho da Juventude, se dirigem à esquadra para pedir esclarecimentos mas acabam detidos e acusados de invasão.

O procurador Manuel das Dores considerou ainda que as versões contadas em tribunal por Bruno Lopes, Jailza Sousa, Neuza Correia e Leila Correia, e por outras testemunhas, provaram que os episódios ocorreram na esquina da Rua do Moinho com a Rua do Chafariz e não onde os agentes escreveram no auto, na Rua da República.

Também não ficou provado que a detenção de Bruno Lopes ocorreu na sequência de uma pedra que este atirou à carrinha da PSP e que, segundo os agentes, motivou o sucedido. O disparo foi feito por João Nunes contra Jailza Sousa e Neusa Correia e por isso o agente é acusado de ofensas à integridade física. 

O auto em que se descrevem estes acontecimentos, disse, tem “um objectivo”: “Branquear o que aconteceu na Cova da Moura.” 

Para o procurador, os testemunhos chegaram para provar que os acontecimentos decorreram na Rua do Moinho e para acusar o agente que atingiu Jailza Sousa de ofensa à integridade física. Mas, acrescentou, ainda foi apresentada mais uma prova — os cartuchos laranja recolhidos pela ofendida, analisados pelo laboratório de polícia criminal que confirmou que correspondiam à arma usada por João Nunes. 

No início, o procurador disse que havia muitos factos no despacho que não estavam atribuídos a nenhum agente pelo que as responsabilidades criminais não podiam ser atribuídas. Afirmou no início: “Este procurador não faz leituras políticas nem sociológicas.”

Assistentes querem manter acusação de tortura e racismo

Nas alegações da equipa de advogados dos assistentes, foram reiteradas as acusações de tortura, tratamentos desumanos, cruéis e degradantes infligidas pelos agentes durante o período de detenção, bem como as acusações de ódio racial. A advogada Lúcia Gomes repetiu algumas das acusações imputadas aos agentes: desde arrancar rastas, a pontapés na cabeça e bastonadas, pontapés no corpo, pés em cima do corpo impedindo-os de respirar, entre outras.

Ao mesmo tempo, acrescentou, os polícias proferiam expressões racistas como “pretos de merda, pretos do c..., vão para a vossa terra, deviam morrer todos”, acrescentou. “Se isto não são tratamentos desumanos, cruéis e degradantes, não sei o que serão."

Ao contrário do procurador, a advogada defendeu que a tese da tentativa de invasão da esquadra “era mirabolante” e que todos os agentes da esquadra em frente que testemunharam as detenções disseram que nenhum dos jovens ofereceu resistência — o procurador Manuel das Dores referiu nas suas alegações ser estranho que ninguém tivesse presenciado este episódio contado por polícias da 64.ª esquadra em tribunal. 

Os advogados defendem que os 17 arguidos devem ser condenados a uma pena e não a uma multa e que o facto de serem agentes da PSP deve ser uma agravante.

Querem também uma indemnização para os ofendidos para serem ressarcidos de várias despesas com consultas e exames médicos. Lúcia Gomes citou um dos ofendidos: “Pisavam e insultavam e depois gostavam daquilo. Eles estavam a gostar daquilo. Parecia o inferno e o nosso sangue ficou no chão. E sempre que tentávamos levantar a cabeça diziam: ‘baixa a cabeça, c…’.” E concluiu: “É imperativo punir os arguidos."

Já Helder Cristóvão, advogado de um dos agentes, defendeu que no relatório médico de um dos jovens, que acusa os agentes de bastonadas e pontapés, aparece apenas uma contusão lombar. O jurista pôs em causa a investigação ao caso, nomeadamente a Polícia Judiciária e os reconhecimentos por esta efectuados. "Este processo está inquinado desde o princípio relativamente ao meu cliente", o agente Arlindo Silva, que agora o MP acusa de injúria. 

As alegações dos advogados dos restantes agentes continuam dia 26 de Fevereiro à tarde.