M6nths não precisa de “imagens chocantes” para mostrar como é a vida de um porco
A curta-metragem premiada não precisa de chegar ao matadouro — nem de recorrer a "imagens consideradas chocantes" — para mostrar como é a vida de um porco de produção. A parte mais difícil, diz a realizadora holandesa Eline Schellekens, é "olhá-los nos olhos".
M6nths não é “gráfico”. Mas só porque a realizadora, Eline Schellekens, assim o quis. Foi dela a escolha ponderada de evitar “imagens consideradas chocantes” na curta-metragem que acompanha os seis meses de vida de um porco destinado ao consumo humano. E é essa ausência que torna o filme diferente de “qualquer outro que poderás ter visto sobre o tema”, garante a holandesa, em entrevista ao P3.
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M6nths não é “gráfico”. Mas só porque a realizadora, Eline Schellekens, assim o quis. Foi dela a escolha ponderada de evitar “imagens consideradas chocantes” na curta-metragem que acompanha os seis meses de vida de um porco destinado ao consumo humano. E é essa ausência que torna o filme diferente de “qualquer outro que poderás ter visto sobre o tema”, garante a holandesa, em entrevista ao P3.
Antes, Eline documentou a perspectiva de “um animal em cativeiro, que anseia pelo exterior” — e a “parte mais difícil foi ter de olhá-lo nos olhos”. A ela, perturbou-a tanto o “olhar curioso, inocente dos leitões” como o ar “cansado, às vezes completamente perdido, das porcas”. Em ambos os casos, o foco dos animais centrava-se em procurar a pouca luz que se esgueira pelas “janelas minúsculas” das fábricas de produção na Bélgica, França e Reino Unido. Foi nesse jogo entre a escuridão e os raios de sol que a realizadora se mexeu. “Nós falamos frequentemente sobre o abate, mas deveríamos concentrarmo-nos mais nas vidas deles. Queremos mesmo reter outro ser senciente da luz solar, uma das nossas fontes primordiais de existência?”
Durante um mês, a realizadora holandesa de 32 anos, a viver em Bristol, testemunhou (e filmou) o nascimento dos leitões. Acompanhou vários com diferentes idades, do nascimento até ao momento em que, aos seis meses, são transportados num camião. E é aí, no primeiro (e único) momento “em que estes animais sentem o ar livre”, que o filme acaba. Antes de chegar ao matadouro. “Todos nós sabemos o destino desta viagem, mas o porco não sabe. Para ele, esta é apenas a primeira vez que ele consegue cheirar o ar e sentir o sol na pele.” É uma nota de esperança? Um final com foco na libertação? “A pergunta é: será mesmo esperança?”, questiona-nos de volta Eline, pouco convencida. “É uma cena sobre inocência e vulnerabilidade. A vida dele está totalmente nas nossas mãos. Algo para pensarmos.”
M6nths não é como os outros filmes sobre matadouros
No final do período de gestação e durante as primeiras semanas de vida das crias, as porcas são mantidas entre grades. Descreve a realizadora que conseguem apenas deitar-se ou levantar-se, mas não têm espaço suficiente para se virarem ou andarem, por exemplo. “[As grades servem] Para prevenir que se deitem por cima das crias, mas se estivessem num ambiente natural isso não seria sequer uma preocupação.” Três semanas após o nascimento, os criadores separam as porcas das crias — quando criadas de forma não intensiva, os leitões podem mamar até aos três meses, diz — e voltam a “engravidá-las de forma artificial, passados alguns dias”. “Depois a mesma rotina recomeça mais uma vez.”
Nada disto foi uma novidade. Eline já tinha visto outros documentários que tinham o mesmo cenário das quintas onde a deixaram entrar. Confirmou-se: as imagens não eram diferentes. “Foram os meus outros sentidos que foram accionados”, lembra-se. “O som, o calor e o cheiro do amoníaco foram avassaladores.” No segundo dia de gravações tanto ela como a equipa de filmagens já levaram máscaras anti-poluição. “Apercebemo-nos mais ainda que no final de um dia de gravações, nós podíamos sair para o ar fresco, mas os porcos não.”
A escolha do tema ou do animal retratado no filme para o projecto final do mestrado em Cinema de Vida Selvagem na Universidade de West England não foi desinteressada. Eline é vegetariana desde que “descobriu que a carne que chegava ao prato era ‘feita’ de animais”. Tinha sete anos. “Tive sorte porque os mais pais têm uma mente muito aberta e respeitaram a minha escolha. Vinte e cinco anos depois o meu pai ainda come carne de vez em quando, mas há dois anos que a minha mãe também é vegetariana”.
Apesar desta escolha pessoal, o objectivo do filme é sobretudo outro: sensibilizar para a necessidade de melhores condições de vida de um animal “social e sensível” que, diz Eline, partilha com o ser humano "a capacidade de sonhar, a inteligência, a curiosidade e a capacidade de experienciar uma quantidade grande de emoções”. “A qualidade mais poderosa do filme é que te dá uma oportunidade de ver o mundo através de outros olhos. Consegues verdadeiramente ver uma nova perspectiva.”
Foram precisos cinco meses até Eline encontrar criadores dispostos a abrirem-lhes as portas e a concederem-lhe acesso livre. Chegou na altura certa a um deles que se preparava para transformar a produção intensiva numa quinta biológica. “Um risco [económico]”, reconhece a realizadora, “mas ele não queria mais continuar a expandir a produção". "Disse-me que o avô geria uma quinta com cinco porcos e que conseguia tomar bem conta deles e sustentar a família, ao mesmo tempo. Agora, um criador precisa de ter pelo menos três mil porcos para sobreviver. Como é possível dar espaço e boas condições a três mil animais?” Com os outros produtores, “foi tudo uma questão de confiança”. “Não queria fazer trabalho disfarçado porque acho que precisamos de diálogo para melhorar. Por isso sentámo-nos todos à mesa da cozinha e conversámos. É fácil apontar para os outros — agricultores, supermercados, políticos — mas são os nossos desejos enquanto consumidores/cidadãos de conseguir muito por muito pouco que são responsáveis por esta indústria.”