Em Vila Real de Santo António, há um arquivo feito por quem lá vive
Há, em Vila Real de Santo António, um arquivo que usa as memórias dos habitantes — sob a forma de fotografias, documentos ou objectos — para (re)criar a cidade "contada, observada, imaginada". Explora o passado, para discutir o presente e o futuro.
Não fosse pelo Arquivo da Vila, Marta Setúbal não conheceria a história do homem que era apelidado de "Viagem à Lua" porque queria voar e se atirou do primeiro andar com um guarda-chuva. Ou de como existiam aviões em Vila Real de Santo António e “as pessoas pagavam dois cêntimos para dar uma volta”. Estas são algumas das histórias das "pessoas da Vila" — como se chamam entre elas — contadas, documentadas e guardadas num arquivo que junta “tudo aquilo que faz sentido para o projecto”: é a Vila “contada, observada, imaginada por quem nela vive”.
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Não fosse pelo Arquivo da Vila, Marta Setúbal não conheceria a história do homem que era apelidado de "Viagem à Lua" porque queria voar e se atirou do primeiro andar com um guarda-chuva. Ou de como existiam aviões em Vila Real de Santo António e “as pessoas pagavam dois cêntimos para dar uma volta”. Estas são algumas das histórias das "pessoas da Vila" — como se chamam entre elas — contadas, documentadas e guardadas num arquivo que junta “tudo aquilo que faz sentido para o projecto”: é a Vila “contada, observada, imaginada por quem nela vive”.
A ideia surgiu há dois anos. Marta, arquitecta de 33 anos, estuda em Berlim, mas já sabia que queria fazer o projecto de mestrado em Estratégias de Espaço em Portugal. Foi a Vila Real de Santo António, de onde é natural, e experimentou organizar workshops onde colocava os participantes em espaço público a falar sobre a cidade. Sentia que a cidade se estava a desenvolver da “maneira errada”, com “edifícios e lugares” que habitou em criança a ser destruídos. Quando partilhou o descontentamento com os conterrâneos, descobriu que “era rara a pessoa que não lamentava também a destruição”. Mas as pessoas estavam resignadas, apenas “encolhiam os ombros”. “Esqueceram-se que a cidade é delas e vou ter que lhes recordar”, decidiu.
Mas com os workshops foi descobrindo que o “desinteresse total” que acreditava existir era, afinal, “aparente”: “Quando comecei a falar com as pessoas, toda a gente tinha sempre alguma coisa a dizer”, refere. Percebeu que “as pessoas estavam muito interessadas no passado”, só não sabiam expressar as preocupações “em espaço público ou nos sítios onde deveriam discutir” — estavam a fazê-lo “em grupos muito pequenos e em muito silêncio”.
Por isso, em Setembro de 2018, criou o Arquivo: um espaço na Rua Dr. Sousa Martins, aberto ao público quase todas as tardes, que contém “uma mesa, com caixas, aberta, onde toda a documentação é organizada e fica disponível para consulta”. A comunidade leva “o que tem em casa e considera importante” — podem ser, por exemplo, fotografias, documentos ou textos (um habitante tem contribuído com crónicas sobre a sua infância) —, Marta fotografa ou digitaliza o material e organiza-o na mesa do arquivo.
Ao contrário do Arquivo Histórico Municipal, este não quer contar a história oficial da cidade, mas sim a “história pequena, as estórias, o que tem a ver com o quotidiano, o (aparentemente) banal, as vivências, o convívio, as coisas que ficam por escrever e se vão perdendo”. A ideia é fazer os habitantes da Vila “sentirem que pertencem a este lugar e que a cidade lhes pertence” porque, desta forma, “não deixarão que seja destruída e terão mais sentido de responsabilidade”.
Além do Arquivo, Marta organiza encontros onde desafia os habitantes da Vila a sentirem-na com os cinco sentidos, a partilhar histórias, acontecimentos, fotografias e objectos. Momentos onde também lança a discussão sobre temas ligados à cidade. E é aqui que descobre as preocupações da comunidade: “A limpeza das ruas, a falta de oferta cultural, a degradação do património e o facto de a cidade estar estagnada economicamente — não há indústria nem emprego. E acabamos sempre por falar de política, está muito implícita uma certa crítica ao poder”, aponta.
No final, “as pessoas que participam acabam por perceber que têm as mesmas preocupações” e Marta acredita que, assim, “é mais fácil expressarem-se”. A “familiaridade” também ajuda: a cidade tem cerca de 11 mil habitantes e, “se por um lado, há um grande controlo sobre aquilo que cada pessoa faz, por outro existe uma familiaridade que não existiria se estivéssemos a falar de uma grande cidade”.
Nos encontros, não se discute só o presente e o passado. O futuro é uma parte importante do projecto: "Tento sempre puxar por ele, acho que as pessoas se desabituaram de sonhar, de querer, acreditar e imaginar. E é urgente que se volte a imaginar", acredita Marta. Arquivar é também uma forma de preparar o futuro. Estão implícitas as questões: "O que queremos lembrar e o que queremos esquecer do nosso passado? O que queremos ver hoje? O que queremos que seja o passado do nosso futuro?"
Depois de cinco meses, o projecto está na recta final — a partir de 20 de Fevereiro, o Arquivo da Vila vai ficar suspenso. Marta vai voltar a Berlim e entregar a tese com os resultados obtidos. Mas quer, no futuro, “encontrar um fundo que entenda e apoie o projecto” para voltar e reactivá-lo por mais uns “dois ou três anos”. Confessa que gostava de ficar ficar pela Vila, rodeada de pessoas "que falam a língua mais próxima" da sua e onde há "infinitas associações, estórias por contar, aspectos por discutir, sonhos para realizar", que, apesar de serem individuais, "são reconhecíveis naquilo que as outras pessoas dizem". "E é isto que relembra o lugar-comum que todos temos — e que é a Vila."