Falar da minha história não é coragem, é orgulho
Ser agredido não é, nem pode ser, motivo de vergonha. É o agressor quem prevarica, não quem sofre abusos.
Quando as coisas não são ditas ou reveladas, é como se não existissem. Ficam escondidas numa cave e só o dono sabe o lugar exacto onde as guardou. Quem passa, lá fora, não faz a menor ideia do que a cave guarda, mesmo que a riqueza que ali repousa seja de interesse público. É precisamente isto que sinto com a minha história relacionada com violência doméstica, que partilhei na semana passada, e que terá chegado aos olhos (e ao coração, espero) de uns largos milhares de pessoas. Mas há uma mensagem perdida no subtexto que me parece que não foi suficientemente clara.
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Quando as coisas não são ditas ou reveladas, é como se não existissem. Ficam escondidas numa cave e só o dono sabe o lugar exacto onde as guardou. Quem passa, lá fora, não faz a menor ideia do que a cave guarda, mesmo que a riqueza que ali repousa seja de interesse público. É precisamente isto que sinto com a minha história relacionada com violência doméstica, que partilhei na semana passada, e que terá chegado aos olhos (e ao coração, espero) de uns largos milhares de pessoas. Mas há uma mensagem perdida no subtexto que me parece que não foi suficientemente clara.
Nos últimos dias, o que mais tenho ouvido é algo deste estilo: "Parabéns por teres tido tanta coragem em contar uma experiência tão violenta". Compreendo perfeitamente a ideia benevolente de que contar uma história com o poder da minha é um acto de bravura, de coragem. Porque nunca é fácil demonstrar que fomos joguetes nas mãos de um bicho estranho, nunca é fácil admitir que fomos dominados por uma besta, nunca é fácil revelar que estivemos numa posição de fraqueza em determinado momento da nossa vida. Concedo, por isso, que contar alguns detalhes tenebrosos sobre uma existência em que a violência doméstica foi um hábito seja entendido como um acto de coragem.
Permitam-me, contudo, a liberdade de contestar essa ideia. A mim, nunca pareceu um acto de valentia contar o sofrimento que o meu pai nos impôs ao longo de mais de uma década. Quem está perto de mim sabe-o: nunca fiz disso segredo porque, de certo modo, toda a história me parecia — e continua a parecer — motivo de orgulho. Eu e, acima de tudo e todos, a minha mãe sobrevivemos. E a sobrevivência só pode ser lida como uma vitória, nunca uma derrota. E as vitórias comemoram-se, celebram-se, recordam-se. É por isso que nunca fiz segredo da minha história. Porque tenho orgulho em exibir uma cicatriz destas, como quem diz: "Isto aqui foi quando ia morrendo, mas consegui safar-me". É como diz o ditado: aquilo que não me mata só me torna mais forte. E a minha história tornou-me mais forte. Melhor ainda: tornou a minha mãe na mulher mais forte e impressionantemente tenaz que alguma vez conheci. A título de exemplo: quando eu nasci, o meu pai roubava o humilde ordenado da minha mãe para gastar no casino, e não havia nada para comer naquela casa (sobrevivíamos apenas graças a uma tia, que nos ajudava a ter, pelo menos, uma refeição diária). Saltemos 25 anos para a frente e a minha mãe é agora uma mulher capaz de pagar o ensino superior (licenciatura e mestrado) ao seu filho, graças a muito esforço, à ajuda preciosa do meu padrasto e mais uns pozinhos de sorte. Nesse sentido, por que é que seria corajoso da minha parte revelar que a minha mãe é esta mulher formidável, que soube encontrar um modo (umas vezes por argúcia, outras por sorte) de se libertar de um homem que a agredia?
Escrevi um artigo de jornal para demonstrar que uma história destas é comum, não é difícil de encontrar. Eu cresci com três histórias de violência doméstica ao meu redor. Ora, a menos que as estatísticas tenham sido antipáticas para comigo, queria-me parecer que eu não seria o único a ter passado por tal coisa. Estava certo: recebi dezenas, talvez centenas de mensagens nas horas seguintes, todas com uma história parecida. Ou de mulheres que, elas próprias, tinham sofrido às mãos dos companheiros, fosse a violência física ou psicológica; ou de pessoas que tinham crescido com pais abusadores; ou de familiares mais ou menos próximos. Mas a realidade ali estava perante os meus olhos: eu não sou o único, e é por isso que precisamos de ouvir mais histórias como a minha. Não para banalizar, mas para demonstrar que é um problema de interesse público, e não uma ou outra ocorrência isolada. Foi, aliás, por isso que recusei vários convites para ir à televisão falar do meu caso. Não quero fazer da minha história uma bandeira, quis apenas ajudar outros a partilhar a sua experiência e demonstrar que estes casos não são assim tão pouco comuns como o discurso público faz querer parecer.
A ideia de que contar uma história destas só se consegue com valentia é também um problema em si mesmo: significa que é natural que as mulheres se inibam de denunciar os abusos de que foram alvo. E isso não é verdade. Ser agredido não é, nem pode ser, motivo de vergonha. É o agressor quem prevarica, não quem sofre abusos. Mas prolongar essa ideia de que é preciso ser-se sobre-humano para contar uma história destas é promover que outras mulheres se inibam de contar a sua experiência. E esse não é o caminho.
Posto isto, repito a pergunta: agora que a indignação já passou, e que os retweets já não dão tantos likes, vamos continuar a ter vontade para mudar o que acontece na casa de tantas portuguesas, de todas as classes, de todas as etnias? Vamos continuar a querer mudar enquadramentos legais e discutir o problema no Parlamento, ou isso foi um mero preâmbulo da campanha eleitoral e vai ficar tudo igual? Tenho de continuar a ter medo que o meu pai regresse para nos atormentar porque o meu país não sabe proteger os seus cidadãos?