Baixar agora o preço dos passes é tão errado como começar uma casa pelo telhado
Devemos caminhar para uma redução efectiva do preço dos transportes públicos, mas começar pelo último passo que deveria ser dado pode revelar-se um erro eleitoralista.
Se amanhã alguém do Porto tiver de ir a Lisboa, muito provavelmente vai ter como primeira opção o transporte público: o que não falta neste eixo é oferta de qualidade (com comboio, autocarro e até avião), por preços bastante mais acessíveis do que o automóvel e com tempos de viagem competitivos. Mas, se tivermos de fazer a viagem de Porto ou Lisboa a Portalegre, por que razão é que não colocamos o transporte público na equação? É por causa disto que baixar o preço dos transportes públicos pode vir a revelar-se uma medida cheia de boas intenções (inclusive eleitoralistas), mas com um elevado potencial para piorar a situação já existente.
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Se amanhã alguém do Porto tiver de ir a Lisboa, muito provavelmente vai ter como primeira opção o transporte público: o que não falta neste eixo é oferta de qualidade (com comboio, autocarro e até avião), por preços bastante mais acessíveis do que o automóvel e com tempos de viagem competitivos. Mas, se tivermos de fazer a viagem de Porto ou Lisboa a Portalegre, por que razão é que não colocamos o transporte público na equação? É por causa disto que baixar o preço dos transportes públicos pode vir a revelar-se uma medida cheia de boas intenções (inclusive eleitoralistas), mas com um elevado potencial para piorar a situação já existente.
É certo que viagens entre Lisboa, Porto e Portalegre não são movimentos pendulares (viagens diárias entre casa e trabalho ou uma aula), mas os factores que levam à opção pelo carro próprio são exactamente os mesmos. Não colocamos o transporte público na equação para ir do Porto a Portalegre porque, se formos de comboio (a opção mais rápida de transporte público), temos de mudar de composição no Entroncamento. Aí encontramos um comboio a gasóleo que foi renovado em 2000, mas que já anda nos carris desde os anos 50. Uma automotora que não passa dos 100 quilómetros por hora quando a linha até dá para mais.
E chegados à estação de Portalegre vemos a cidade ao longe (porque a estação fica a uma dezena de quilómetros e o ramal de ligação à cidade ainda não saiu do papel). Lá nos metemos no autocarro que a Câmara de Portalegre assegura durante a semana, e, se precisarmos de voltar no mesmo dia, temos de ser rápidos porque só há um comboio de regresso por dia, menos de quatro horas depois de termos chegado à cidade.
E, imagine-se, o preço do bilhete de comboio do Porto para Portalegre não é assim tão diferente do custo da viagem de Porto para Lisboa(ronda os 13 euros, se for comprado com antecedência) e, no caso de ser apenas um passageiro, é o modo de viagem mais em conta. Se o preço não é o primeiro factor para a escolha de um transporte público por que é que continuamos a ter uma maioria de pessoas a utilizar o transporte individual nas suas deslocações nas regiões de Lisboa e Porto (56,3% em Lisboa e 65,2% no Porto)?
O inquérito à mobilidade nas Áreas Metropolitanas de Lisboa (AML) e Porto (AMP), realizado pelo INE em 2017, diz-nos que o factor mais importante para a utilização do carro é a rapidez. Depois vem o conforto/comodidade e o facto da rede de transportes públicos não ter ligação directa ao destino. Seguem-se as queixas pelo transporte público não ter frequência ou fiabilidade — e podemos continuar a anunciar outros “depois” até que chegamos ao factor “custo”, que só aparece em 7.º lugar em Lisboa e em 12.º lugar no Porto). Só 13,9% dos residentes da AML e 8,1% dos residentes da AMP dizem que optam pelo automóvel por ter um custo mais reduzido do que o transporte público (são estes que poderiam mudar para os transportes se os preços baixassem). E, imagine-se, quase metade das pessoas que usa transporte público diz que o faz porque não conduz, não tem carro, ou porque não tem outra alternativa. Ou seja, provavelmente, uma boa parte destas pessoas deixaria de usar transportes públicos se pudessem.
Mesmo com todas as filas de trânsito nos acessos a Lisboa e Porto (e são mais de 600 mil os carros que entram nas duas cidades todos os dias), com os custos e a dificuldade do estacionamento, com eventuais portagens no trajecto e mesmo com os próprios custos associados à manutenção de um veículo pessoal, os utilizadores continuam a afirmar que o automóvel é a forma mais rápida e cómoda de chegarem ao destino. Se isto não é sinal de que temos um problema, o que será?
A partir de 1 de Abril, o PART (Programa de Apoio à Redução Tarifária) tem um orçamento de 106,6 milhões de euros para baixar o preço dos passes em todo o país (70,2% das verbas ficam em Lisboa), apesar de ainda não se saber bem como vai funcionar para lá das áreas metropolitanas. De um momento para o outro aparecem mais de 100 milhões de euros para baixar o preço dos passes, mas não apareceram 40 milhões para quem vem de Beja ter uma linha de comboio electrificada que permita uma viagem rápida, directa e cómoda para Lisboa (esses vão ter de esperar pelo Plano Nacional de Investimentos de 2030 e pelo dinheiro de Bruxelas).
Há dinheiro para baixar os passes, mas Loures continua a não ter comboio (a opção de estender o metro para lá revelar-se-ia mais cara do que criar uma linha suburbana de comboio entre Malveira e Sacavém, passando por Loures). Aparecem milhões para os passes, mas não há 25 milhões para devolver os carris à linha do Corgo e voltar a servir de comboios Vila Real, 15 milhões para ligar Amarante, 80 milhões para modernizar o Vouguinha ou mesmo 100 milhões para devolver a linha (já electrificada) ao Ramal da Lousã (numa solução mais eficaz do que o metrobus e que não implicaria estar a mexer nas pontes do traçado para as adaptar para a passagem de autocarros). Apesar de haver dinheiro para baixar os passes, continuamos a fazer uma festa quando chega ao Porto um comboio dos anos 80 que os espanhóis já não querem e que está longe de ter as condições de conforto necessárias para atrair alguém para este modo de transporte.
Enquanto isso os nossos autocarros continuam com uma velocidade comercial baixíssima nas grandes cidades e são pouco atractivos em algumas transportadoras. Para não falar de que, ao fim de semana ou em período nocturno, ainda se torna numa aventura maior pensar em utilizar o transporte colectivo e fora das grandes cidades os horários são mínimos.
Antes de se baixar os preços, temos de criar condições nos transportes para que sejam efectivamente atractivos, rápidos e confortáveis. Para que cheguem mais longe, sejam modernos e tenham mais horários.
Se é certo que, para muitas famílias, esta medida vai representar efectivamente mais orçamento disponível (mais do que mexidas nas tabelas de IRS ou aumentos no Salário Mínimo Nacional), também estes utilizadores podem vir a assistir ao degradar rápido dos serviços, se não existir um efectivo aumento de oferta. Forçar um aumento de procura sem se mexer na oferta resulta em desequilíbrio, é simples.
Por exemplo, de um mês para o outro podem passar a existir milhares de novos utilizadores do serviço da Fertagus, para quem a redução tarifária vai ser grande. Um morador de Setúbal deixa pagar 150,20 euros pelo passe combinado com o Metro de Lisboa e passa a pagar 40 euros. Se isso parece bom para quem já usa o serviço, como será se a transportadora com a concessão da ligação ferroviária pela ponte 25 de Abril não tiver meios para aumentar a oferta, como actualmente acontece? Com os comboios à pinha e sem um reforço de oferta, o que parece, à primeira vista, uma boa medida, pode tornar-se num grande problema para os utilizadores que mais necessitam dos transportes para a sua mobilidade quotidiana.
Em Lisboa, a Carris tem feito um esforço para modernizar o serviço e chegar a mais zonas da cidade, assim como em Matosinhos. Santo Tirso e Alcobaça até chegaram mais longe e tornaram os transportes gratuitos. Mas continuamos a ter vastas zonas no país que não são servidas ou onde não há alternativas para quem estuda ou trabalha durante a noite, por exemplo. Onde partir e chegar a tempo ainda é uma incógnita e onde o carro não é luxo, mas necessidade.
A simplificação tarifária é um passo que teve de ser dado, mas restam questões sobre a realidade foram das áreas metropolitanas. Fora da AML e AMP as poucas verbas disponíveis vão criar disparidades no acesso ao transporte público, que manterá a pouca oferta e um preço elevado de acesso. Também não nos podemos esquecer que, até agora, aqueles que mais precisavam já contavam com tarifários sociais (conhecidos como Passe Social +) com descontos de 50% ou 25%.
É certo que o caminho vai passar por reduzir o preço dos passes, mas antes disso há muito mais a fazer. E 100 milhões de euros investidos em baixar o preço dos passes neste ano são menos 100 milhões que ficam para a melhoria de infra-estruturas, compra de novos veículos, implementação de faixas dedicadas para autocarros ou para a criação de novas ligações. Se o objectivo da redução dos passes for eleitoral, o timing é o mais acertado, mas se o objectivo é melhorar o transporte público, esta poderá ser, num futuro próximo, a pior das medidas.
O presidente da autarquia de Bogotá, Enrique Peñalosa, disse, numa Ted Talk, que “a cidade desenvolvida não é aquela em que os pobres andam de carro, mas aquela em que os ricos usam o transporte público”. O caminho passa por aqui: mais importante do que todos terem um carro é todos terem condições de mobilidade rápidas, eficazes e confortáveis. Demora tempo, mas no futuro dá muito mais votos (e qualidade de vida).