O sumarento regresso de Mamão aos discos
Drum machine do histórico conjunto brasileiro Azymuth, o veterano Mamão regressa aos discos a solo com a atitude e o atrevimento de um miúdo recém-chegado ao admirável mundo do som. “Que Legal”!
No ano passado, a propósito da vinda de Marcos Valle e dos Azymuth para um concerto em Lisboa, Ivan Conti (mais conhecido como “Mamão”), baterista dos segundos, dizia-nos que os seus ídolos de sempre davam pelo nome de Gene Krupa, Buddy Rich ou Billy Cobham, enormes, lendários bateristas (“bateras”, como dizem os brasileiros) da história do jazz. Pois bem, resta saber se algum deles seria capaz de, aos 72 anos — depois de um último disco a solo editado no já longínquo ano de 1997 (Pulsar) e, sobretudo, de uma longa carreira em que tocou de tudo, com todos (e “todos” inclui alguns dos seus maiores contemporâneos, casos de Chick Corea ou Herbie Hancock) e, enfim, em praticamente tudo o que é palco deste mundo —, ter a disponibilidade (mental, sim, mas também física, ele que ainda há poucos anos conseguiu ser operado a uma anca graças a um fundo solidário de fãs), a energia, o entusiasmo para se lançar a um disco deste calibre.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
No ano passado, a propósito da vinda de Marcos Valle e dos Azymuth para um concerto em Lisboa, Ivan Conti (mais conhecido como “Mamão”), baterista dos segundos, dizia-nos que os seus ídolos de sempre davam pelo nome de Gene Krupa, Buddy Rich ou Billy Cobham, enormes, lendários bateristas (“bateras”, como dizem os brasileiros) da história do jazz. Pois bem, resta saber se algum deles seria capaz de, aos 72 anos — depois de um último disco a solo editado no já longínquo ano de 1997 (Pulsar) e, sobretudo, de uma longa carreira em que tocou de tudo, com todos (e “todos” inclui alguns dos seus maiores contemporâneos, casos de Chick Corea ou Herbie Hancock) e, enfim, em praticamente tudo o que é palco deste mundo —, ter a disponibilidade (mental, sim, mas também física, ele que ainda há poucos anos conseguiu ser operado a uma anca graças a um fundo solidário de fãs), a energia, o entusiasmo para se lançar a um disco deste calibre.
Não um disco anódino, redundante, frouxo, como tantas vezes acontece com músicos já consagrados nos seus últimos trabalhos, mas, ao invés, profusamente trabalhado como Poison Fruit o é, objecto aturadamente composto, arranjado, orquestrado (e, note-se, só falsamente “instrumental”, com a particularidade de as vozes, maioritariamente de Mamão, nunca surgirem de modo convencional, i.é, como “canção”, antes sussurro, cochicho, interjeição, coro). Se Poison Fruit é já um marco na música brasileira de 2019, não o é, porém, apenas pelo facto de vir indexado a um nome histórico, mas sim, o que não é de somenos, por se tratar, de certo modo, de um objecto old fashion, ou seja, fabricado “à antiga”: composições e instrumentações complexas, extensas, em contracorrente com o modo de criação digital supersónico de hoje em dia — não que este último seja, evidentemente, “pior”, apenas importando sublinhar, porém, a beleza do gesto de um veterano em acreditar num modo de trabalho de formiga, paciente e exaustivo (ironicamente, este é também um álbum que, nas suas cadências e harmonias, está mesmo aí à espera de ser samplado por produtores de hip-hop mundo fora, os tais que criam à velocidade da luz, não sendo por acaso, aliás, que Mamão se juntou já ao lendário Madlib para, no projecto de nome Jackson Conti, editar Sujinho em 2008). Se essa dimensão, digamos, laboriosa é perceptível de uma ponta à outra, a verdade é que, até “Ninho”, o disco se nos oferece genérica e francamente desinteressante (apesar de muitíssimo bem tocado), num cruzamento de acid jazz, house, samba e bossa que, devedor dos últimos trabalhos dos Azymuth (um dos instrumentistas é, justamente, Alex Malheiros, um dos seus elementos fundadores, a que se juntam o produtor londrino Dokta Venom, Thiago Maranhão, filho do próprio Mamão, ou Kiko Continentino), sempre foi, quanto a nós, uma das derivações menos entusiasmantes do jazz de fusão (ao que ajudou, é certo — embora isso seja já sintomático de alguma coisa —, o facto de ter sido esse o filão do jazz adoptado por tudo o que são bares de sunsets e “gins tónicos” em rooftops). Mas este é, afinal de contas, como o próprio título indica, um Poison Fruit (conferir a ilustração, fabulosa, da capa), pelo que a ambivalência lhe é intrínseca: amargo e doce, sumarento fruto e maligno cogumelo, saudável e alucinogénico. Por essa razão é que, a partir da quinta malha, Mamão sai, então, finalmente do Ninho para, na companhia de umas acidíssimas teclas (muito na linha, aliás, do etiopiano Hailu Mergia no seu último disco por nós aqui elogiado, Lala Belu), começar a dar espectáculo, num instrumental que, iniciando-se como de um potente beat de hip-hop se tratasse (aquela linha de baixo já a pedir rimas por cima), evolui depois, na bridge, para um proto-samba vagamente psicadélico. Enfim, toda uma lição de swing que se prolonga, cheia de charme, por Ilha de Luz, uma das quatro faixas do álbum com direito a remistura de terceiros, neste caso por parte de Tenderlonious, coqueluche da nova música urbana britânica (dá-se o caso, aliás, de as duas remisturas da faixa Encontro serem ambas bem mais prazerosas do que o original).
A malha que dá título ao disco é, outrossim, um dos seus pontos mais altos: é o momento em que a electrónica toma definitivamente conta do palco, a começar pela batida e a terminar nos teclados, tudo a concorrer para algo muito próximo de um tecno progressivo (novamente a afinidade com Hailu Mergia) mas em que a heterogeneidade da percussão matiza a dimensão mais urbana, industrial, da bateria: à cidade Mamão adiciona-lhe selva; ao betão, vegetação; ao cinzento, verde. São, de facto, os Ecos da Mata secretamente penetrando a urbe, título da penúltima faixa que podia ser título de todo o disco, desse modo rimando com o Rio de Janeiro, esse lugar metade cidade, metade selva em que o disco foi gravado — ou vice-versa, os ecos da cidade embrenhando-se na selva, Mamão como o Fitzcarraldo de Werner Herzog a entrar de mansinho no matagal amazónico enquanto vai simultaneamente dando e recebendo música… Iniciado sob o signo do samba mais clássico, o instrumental vai sendo progressivamente assombrado por rumores tribais, místicos, esses próprios de um Ritual pagão, malha na qual a percussão é de tal modo elástica que, aliada aos cinemáticos estrepitares que vão assomando aqui e ali, atira a canção, subitamente, para uma certo “espacialismo” (o que só sublinha essa ideia de como todo o misticismo, na sua profunda ligação à “terra”, remete sempre, inevitavelmente, para o “céu”, para o cósmico). Editado pela Far Out, selo britânico absolutamente fundamental na reedição, entre outros, de grandes discos esquecidos no fundo do baú brasileiro (e fora do raio de influência daquilo que ficou cristalizado no mainstream e no imaginário popular como a “MPB”: Caetano, Chico, Vinícius, Elis, Gilberto, Jobim, etc.), Poison Fruit constitui-se, assim, num trabalho de múltiplas amplitudes e latitudes (rítmicas, geográficas, temperamentais) — acima de tudo, e descontando os momentos mais sensaborões, uma declaração de arrojo e jovialidade de um veterano a quem não interessa o comodismo das fórmulas que já domina, antes o tactear de novas possibilidades. E, enfim, o puro prazer da recriação nesse caminho — ou, como se ouve a certa altura, (Ai) Que Legal!, o vocoder a projectar um choque que, se não é do futuro (à Hancock), certamente o é, em qualquer caso, para os músculos e para os sentidos.