O mar e os desafios do século XXI
É muito importante que Portugal, onde o mar já representa 3% do PIB, tenha um plano integrador e mobilizador para o futuro capaz de maximizar todo o potencial que existe na sua Zona Económica Exclusiva.
Quanto mais analisamos os grandes desafios deste século – o crescimento demográfico e económico e a necessidade de mudar o paradigma para um modelo mais sustentável; a ameaça climática; a luta pelos recursos e a privação de água e alimentação em alguns países – mais o mar emerge como uma das grandes respostas. Numa época de explosão da inteligência, como Irvin John Good previu em 1962, os avanços do conhecimento e da ciência podem mudar radicalmente a nossa relação com o mar. Estabelecemos com o mar uma relação predatória convertendo-o numa espécie de campo de caça e casa de banho do planeta. Não pode ser. O mar deve ser estudado, compreendido, cultivado e protegido. Tendemos a danificar o que não conhecemos mas com o tremendo avanço das tecnologias digitais, do poder dos sensores, da capacidade de colhermos a informação adequada e de pensarmos com ela, podemos transformar o mar num estabilizador do clima da Terra, ampliar o seu papel de sumidouro de CO2 e de plataforma de biotecnologias e bioenergias, fonte sustentável de recursos biológicos, minerais e energéticos.
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Quanto mais analisamos os grandes desafios deste século – o crescimento demográfico e económico e a necessidade de mudar o paradigma para um modelo mais sustentável; a ameaça climática; a luta pelos recursos e a privação de água e alimentação em alguns países – mais o mar emerge como uma das grandes respostas. Numa época de explosão da inteligência, como Irvin John Good previu em 1962, os avanços do conhecimento e da ciência podem mudar radicalmente a nossa relação com o mar. Estabelecemos com o mar uma relação predatória convertendo-o numa espécie de campo de caça e casa de banho do planeta. Não pode ser. O mar deve ser estudado, compreendido, cultivado e protegido. Tendemos a danificar o que não conhecemos mas com o tremendo avanço das tecnologias digitais, do poder dos sensores, da capacidade de colhermos a informação adequada e de pensarmos com ela, podemos transformar o mar num estabilizador do clima da Terra, ampliar o seu papel de sumidouro de CO2 e de plataforma de biotecnologias e bioenergias, fonte sustentável de recursos biológicos, minerais e energéticos.
Nós vivemos num planeta extraordinário com uma história geológica impressionante que explica porque não perdemos a atmosfera e os oceanos, como aconteceu por exemplo com Marte. E isso deve-se ao facto de o núcleo da Terra não ter arrefecido (ao contrário do de Marte), está em fusão e contém minerais radioativos como o urânio e o tório que são a nossa salvação. A sua radioatividade gera calor na Terra profunda e isso faz com que o núcleo de ferro se mova e crie um campo magnético. É este que protege a nossa atmosfera do vento solar e desvia as radiações mortais que chegam do espaço. Em Marte e muitos outros planetas, como o núcleo arrefeceu e não gera um campo magnético forte, a atmosfera foi lentamente soprada para o espaço pelo vento solar e com a queda da pressão atmosférica os oceanos ferveram e evaporaram-se. O nosso seguro de vida neste planeta deve-se a uma combinação prodigiosa de variáveis geológicas e isso torna premente cuidarmos dos oceanos e neles intervir com base na ciência e no conhecimento. O que se passa hoje no mundo a este nível é fascinante em múltiplas dimensões.
Primeiro: o projeto internacional Argo, que é uma espécie de digitalização do mar. Usa milhares de boias com sensores de alta precisão que descem em ciclos de dez dias até 2000 metros de profundidade e registam a pressão, temperatura, nível de oxigénio, CO2, acidificação, volume de plásticos, recursos biológicos. Esta quantidade imensa de informação está a revolucionar a oceanografia e a climatologia. O poder dos sensores muda tudo e é possível tomar decisões, com base no conhecimento, para intervir e isso é promissor para a sustentabilidade futura do mar e do seu papel de estabilizador climático.
Segundo: uma descoberta impressionante mostra que a camada superficial do mar, com três metros de espessura, cuja temperatura aumentou 0.9ºC nos últimos cem anos, tem uma energia calorífica acumulada que é de 1000 milhões de vezes a energia deflagrada pelas bombas atómicas de Hiroshima e Nagasaqui, que puseram fim à Segunda Guerra Mundial. E é esta imensa quantidade de energia que quando é libertada para a atmosfera gera os eventos extremos como tufões e ciclones. Não sabemos como é que essa energia se liberta e em que condições. Mas a compreensão deste fenómeno pode conduzir a uma das maiores descobertas do século, que pode minimizar os riscos de eventos extremos e utilizar esta energia para fins construtivos.
Terceiro: a investigação mostra que o oceano é uma fábrica “escondida” de energia. Só as energias das ondas, correntes e amplitudes de maré, correntes profundas, gradientes térmicos e mudanças de salinidade, têm um potencial que vai de 40.000 a 80.000 terawatts-hora, isto é, quatro vezes o consumo total de eletricidade do planeta, que é de 20.000. Estas fontes de energia renovável e limpa podem ser uma salvaguarda do futuro.
Quarto: a informação coletada e o conhecimento adquirido podem mudar a trajetória de depleção dos recursos biológicos do mar. Algumas empresas norueguesas já estão a usar “gémeos” digitais, isto é, máquinas que aprendem e simulam faculdades cognitivas com base em redes neuronais. Municiadas com um acervo infinito de informação, modelam a vida dos cardumes de salmão, identificam os ciclos de gestação e crescimento, definem os momentos certos da pesca para impedir a depleção excessiva e com tudo isso os stocks de peixe tornam-se estáveis. Isto abre caminho para uma gestão inteligente dos recursos biológicos do mar numa altura em que devemos comer mais peixe do que carne para minimizar a ameaça climática.
Quinto: os avanços tecnológicos têm permitido também resolver um dos problemas mais difíceis – a navegação de drones e robôs no fundo dos oceanos. O sistema Posydon, desenvolvido pela marinha americana, é uma espécie de GPS para o fundo do mar. Ele liberta o espaço que nos drones e robôs era ocupado por sistemas pesados que tratavam da sua localização. Com este avanço é possível mapear os fundos marinhos sem os desestabilizar, mapear os ecossistemas, estudar o seu funcionamento e protegê-los. É o que está a ser feito na grande barreira de corais da costa leste da Austrália, onde a Universidade de Queensland construiu drones que protegem os corais dos ataques de uma estrela-do-mar tóxica, conhecida como coroa de espinhos. Ao mesmo tempo está a ser feita uma experiência no Pacífico, na zona Clarion-Clipperton, sob direção da Autoridade Mundial para os Fundos Marinhos, para se testar a possibilidade de explorar crostas de níquel e manganês e sulfuretos polimetálicos com robôs que simultaneamente mapeiam todos os ecossistemas e só intervêm se a vida desses ecossistemas for preservada. Provavelmente vamos ter no futuro cidades submarinas com robôs e drones, como parte de um programa de utilização sustentável dos oceanos, uma espécie de sonho de Jules Verne, onde está o Nautilus, mas sem o capitão Nemo.
É muito importante que Portugal, que tem lançado muitas iniciativas avulsas nos últimos anos e onde o mar já representa 3% do PIB, como confirma o último barómetro do LEME, tenha um plano integrador e mobilizador para o futuro capaz de maximizar todo o potencial que existe na sua Zona Económica Exclusiva. Se falharmos neste projeto de futuro e continuarmos a praticar a apatia como estratégia passaremos uma vez mais ao lado de uma oportunidade crucial para diversificar a economia e criar novos motores de riqueza baseados na ciência, conhecimento e tecnologia. Como dizia há dias Borys Cyrulnik, uma sociedade sem projeto de futuro sofre de lobotomia cultural. Isso leva à estagnação e à paralisia.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico