O que fazer com a diversidade étnica dos povos Amazónicos?

Não se sabe o que fazer com a Amazónia do ponto de vista governamental. Como se os povos tradicionais, conjuntamente com as ciências, já não tivessem encontrado muitas soluções.

Foto
Homens Yawalapiti se preparam para ritual do Quarup, Terra indígena Xingu Renato Soares/Imagens do Brasil

É urgente repensar território, sociodiversidade e biodiversidade da Amazónia sob uma nova ótica de relacionamento em que não faz mais sentido a disjunção Natureza & Cultura. Natureza é Cultura. Cultura é Natureza. Existem muitas Amazónias, para os mais diversos gostos, cores, ideologias e projetos de ocupação. Nenhuma delas faz parte de um projeto governamental que respeite a autodeterminação dos povos e comunidades tradicionais e que, em sua interação com a comunidade académica, poderia gerar conhecimento para um novo e muito mais que urgente modelo de vida humana sobre o planeta. Um modelo gerador de paz e aliança entre os povos. Os externos e os que vivem na floresta. Um modelo que ensinasse florestania à uma cidadania precária baseada no consumo de objetos com rápida obsolescência e eterna contaminação do ambiente.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

É urgente repensar território, sociodiversidade e biodiversidade da Amazónia sob uma nova ótica de relacionamento em que não faz mais sentido a disjunção Natureza & Cultura. Natureza é Cultura. Cultura é Natureza. Existem muitas Amazónias, para os mais diversos gostos, cores, ideologias e projetos de ocupação. Nenhuma delas faz parte de um projeto governamental que respeite a autodeterminação dos povos e comunidades tradicionais e que, em sua interação com a comunidade académica, poderia gerar conhecimento para um novo e muito mais que urgente modelo de vida humana sobre o planeta. Um modelo gerador de paz e aliança entre os povos. Os externos e os que vivem na floresta. Um modelo que ensinasse florestania à uma cidadania precária baseada no consumo de objetos com rápida obsolescência e eterna contaminação do ambiente.

A região amazónica, desde sua nomeação, experimenta diversas projeções de sujeitos externos sobre seu território. A começar pelo seu próprio nome em homenagem a um mito grego, o das amazonas. Sem contarmos com uma história prévia da Amazónia, podemos assegurar que esse corte epistemológico, o do batismo grego, no século XVI, com certeza, desde então, há mais de 500 anos, experimenta as agruras impostas por predatórios sistemas de exploração a vida, seja ela animal ou vegetal, que têm definido, tantas vezes, o destino trágico de suas comunidades.

Será novamente assim a partir deste ano. Mais um grupo de sujeitos externos ao território amazónico imaginará o destino que ali deveria habitar e, na contramão do Bem viver como explica Alberto Acosta, tentará levar a cabo suas experiências. Para Acosta o Bem viver não implica uma proposta acadêmico-política, mas a possibilidade de aprender a partir de realidades, experiências, práticas e valores presentes em diversos habitats, mesmo nos dias atuais em meio à civilização capitalista.

Apesar de a mais refinada ciência ocidental ter partilhado em revistas, livros, inúmeras aulas, palestras, demonstrações audiovisuais, que o melhor trabalho e o melhor destino para a Amazónia e seus povos, tanto quanto para o destino climático e a biodiversidade do planeta é manter e reproduzir a conservação da floresta, como fazem, naturalmente, os povos tradicionais que ali habitam – indígenas, quilombolas, ribeirinhos, pescadores e extrativistas da terra e da água – enfim, aqueles que vivem ali muito antes dos predadores do mercado mundial, seja ele nacional ou internacional, chegarem. Quando falamos da cultura ocidental, podemos citar uma ganhadora Nobel e seu trabalho que faz o elogio dos sistemas de uso comum: a norte americana Elinor Ostrom.

Pensemos por um momento naquela Amazónia que não aparece nos média, nos escândalos e na imaginação científica contemporânea. Nela se escondem problemas verdadeiros da região – a começar pelo silêncio que acoberta a vulnerabilidade dos povos tradicionais, o desmantelo sociocultural e ambiental e os modelos de predação económica e cultural empreendidos em longas escalas temporais e espaciais.

Esse silenciamento corre na esteira de um projeto civilizatório que não contempla índios, quilombolas, ribeirinhos, pequenos agricultores, trabalhadores da floresta, etc, e não vislumbra dimensões da existência da Amazónia que considerem a sua cultura e a complexidade de seus biomas. Esse silenciamento nos impõe a todos uma nova relação com as informações, na qual, se quisermos ser ecologicamente corretos, devemos nos tornar pesquisadores, buscar e checar informações e compartilhar o que se sabemos comunitariamente. O que está em jogo é a sobrevivência de todos nós. O dia em que não houver mais lugar para o índio, não haverá lugar para o humano. Algo como “a morte da floresta é a nossa morte”, estava estampado na camiseta da Irmã Dorothy Stang, que foi assassinada em fevereiro de 2005.

Nossa agrura surge do fato de a Amazónia ser parte de um contínuo processo de renovação de sua colonização, que não terminou com a independência do Brasil. Novos tempos, novas colonialidades: a floresta segue como laboratório a céu aberto de interesses econômicos e empreendimentos que não deixam dúvida sobre o impacto da invasão e submissão de terras e gentes aos vencedores.

Outro aspecto a ser considerado é que, mesmo diante do estágio contemporâneo da sociedade brasileira, o Estado não tem projeto para a região, salvo o de ceder a Amazónia como moeda de troca para qualquer forma de experiência e intervenção dita produtiva. Como se manter e reproduzir a floresta em pé – algo que os povos amazónicos fazem há milénios, gerando, inclusive, rios voadores, esses que chovem sobre nós em toda a América do Sul – não fosse suficiente produção.

Não se sabe o que fazer com a Amazónia do ponto de vista governamental. Como se os povos tradicionais, conjuntamente com as ciências, já não tivessem encontrado muitas soluções. No entanto, não são soluções imediatas para a ganância do agronegócio que atuam na região. A Amazónia da atualidade é um território de enclaves – no Mato Grosso, na Zona Franca de Manaus, no Acre, no Pará – que não levam em consideração o diálogo entre povos tradicionais e ciência, produtor de muito rico conhecimento sobre a região. Os povos indígenas são também produtores de conhecimento.

Em síntese, o maior problema da Amazónia é essa violência lenta, contínua, da indiferença entre o governo e seus povos, que poderia ser feita a partir de uma ciência interessada no presente e no futuro humano. Mas a indiferença submete os inocentes, subverte o que poderia ser verdadeira e contemporaneamente nacional na política brasileira, e sabota todo e qualquer projeto autônomo de preservação da cultura, de biomas, da memória e da nossa história. Contra a ignorância, temos a ciência, os conhecimentos tradicionais, a memória.

O fim da Amazónia é o fim do coração da humanidade. Coração não no sentido biológico, como disse tantas vezes o senso comum substituindo coração por pulmão. Coração no sentido poético. Coração no sentido em que imaginação poética e científica são forças que deveriam guiar os projetos de diálogo entre políticas públicas e os povos da floresta.

A Amazónia ocupa cerca de 61% do território brasileiro. Lá vivem 25 milhões de pessoas. São cerca de 300 etnias e 180 línguas. Tudo isso são formas de vivenciar, experimentar, sentir e imaginar o mundo. Mundo este que está precisando de novas soluções para que toda a humanidade possa viver, com algum bem-estar. O bem-estar civilizatório, afinal, nunca chegou para ninguém. Mas quem paga continuamente a conta do mal-estar na civilização tem sido, em primeiro lugar, a alteridade radical ao Ocidente que se configura no “indígena”.