Nada nos prepara para Nápoles
Uma urbe imensa espalhada no sopé de um vulcão e assente sobre inúmeras camadas de história. Um núcleo bruto e visceral de onde se alcança facilmente uma costa delicada. Para perceber completamente Nápoles seriam precisas muitas vidas, tantas como aquelas com que nos cruzamos nas suas labirínticas ruas.
Nápoles agarra-nos pelas entranhas e cola-se a todos os sentidos com tremenda ferocidade. A meio de Agosto, o calor e a humidade acentuam esse abraço visceral da cidade, que faz cair sobre nós uma realidade sem concessões feita de ruas intrincadas, uma expressividade física que grita em todas as esquinas, um ritmo frenético que nos arremessa numa vertigem para logo nos amparar com a sua integridade e maneira muito própria de ser. É um organismo vivo que pulsa continuamente.
Vamos já dizer as coisas como são: Nápoles não é o protótipo da cidade turística de postal. É feia, suja a roçar o infecto, esconsa, labiríntica e escura. Está também longe, muito longe, de encabeçar a lista de destinos facilmente visitáveis: é complicada, caótica, bruta e disfuncional. E no entanto transpira uma verdade de que todos, sem excepção, parecem comungar. Estende-nos uma genuína bondade do cimo da sua altivez só alcançável àqueles que nada escondem sobre o que são e para o que ali estão. Por debaixo do sarro assoma uma elegância e nobreza antigas. No meio das suas ruas de portas abertas acolhe-nos uma beleza despudorada.
Esta também não é a clássica reportagem que informa sobre os melhores hotéis, restaurantes e bares da cidade para turistas ready-made. Foi uma viagem de orçamento controlado, por isso alugámos um pequeno apartamento e poupámos nas refeições fora. Ao contrário de constituir uma lacuna, tanto para umas férias de Verão como para um artigo de viagens, acabou por ser o que nos abriu as portas de Nápoles e do seu dia-a-dia. Percebemos isso logo no primeiro momento: saímos de manhã para abastecer a casa de mantimentos e já o calor e a humidade abafavam a cidade, o clamor do trânsito zumbia por todos os lados e a fauna napolitana vociferava a plenos pulmões.
Devemos ter parecido perdidos e confusos com aquele primeiro impacto. De tal maneira que um senhor dos seus cinquenta e tal anos deu por nós e, com aquele jeito italiano de falar com gestos, que no caso dos napolitanos veste uma ginga de permanente desafio, adoptou-nos com esta simples frase: “Ma, cosa stai cercando? [O que estão à procura]?” Tomaso di Borbone, assim se apresentou (mais tarde viemos a encontrá-lo novamente e explicou-nos a origem do seu nome, que se mistura com a história da cidade) e assim também nos entregou o cartão de visita dos napolitanos: curiosos, disponíveis, orgulhosos e, principalmente, sociáveis. “I napoletani hanno un grande cuore! [Os napolitanos têm um grande coração!]”, rematou ele este primeiro encontro, batendo no lado esquerdo do peito com indisfarçável orgulho.
Feios, porcos e bons
Logo ali, além de ficarmos a saber onde comprar a melhor fruta e o peixe mais fresco, percebemos que estávamos a residir em La Sanità, considerado pela intelligentsia dos operadores turísticos um dos bairros perigosos e a evitar, numa cidade onde o alarme generalizado relativo à segurança ultrapassa claramente, e até de forma injusta, a realidade.
Em La Sanità embrenhámo-nos nos seus ritmos, conhecemos os vendedores e metemos conversa com os que se demoravam na rua no tal dolce far niente. Estabelecemos a nossa própria vida de bairro com a vizinhança. Ainda que por pouco tempo, fizemos parte de tudo aquilo. Em Nápoles é fácil que assim seja, pois parece que toda a cidade é habitada por uma única e alargada família. Todos falam e exprimem-se da mesma maneira. Nápoles é pobre e é popular.
A rua é onde tudo acontece e as casas são a sua extensão, sempre de portas abertas, numa proximidade que tanto raia a promiscuidade como nos faz sentir gratos e reverentes perante a ternura dos quadros que vislumbramos de soslaio. Os napolitanos não têm pejo nenhum em fazer-se notar e partilham com a comunidade os momentos mais importantes da vida. Afixam cartazes quando alguém morre e colocam fotografias dos falecidos nos inúmeros nichos religiosos kitsch espalhados pela cidade. Lançam valentes fogos-de-artifício de cada vez que alguém festeja um aniversário. Comunicam e insultam-se com papelinhos afixados no interior dos prédios e na rua. Penduram gigantes chupetas e laçarotes de peluche nos portões para celebrar o nascimento de mais um filho.
Na relação com as crianças – e há muitas! – percebe-se o treino familiar e comunitário de todo e qualquer napolitano. É também onde mais se revela a sua bondade. O carinho, o deslumbramento e o cuidado que todos partilham pelas crianças, omissos dos tiques exteriores de autoridade paternal ou até de exagerados protocolos de bom comportamento, fazem dos putos uns napolitanozinhos em potência, crescendo num caldo cultural que não poderia fazer deles outra coisa que não veri napoletani.
Salvar o colapso com fita-cola
Uma parte fundamental do treino para se vir a ser um verdadeiro napolitano é dominar uma scooter - diga-se, em abono da verdade, que devem ultrapassar largamente em número a população. Vimos crianças que ainda nem sequer gatinham a serem transportadas num braço enquanto o outro segura o guiador. É comum verem-se famílias inteiras de um lado para o outro: o pai à frente, o filho mais pequeno entalado entre ele e a mãe, e o mais velho atrás agarrado a esta. Mais frequente ainda é ver crianças de chucha na boca, em pé agarradas ao guiador e encostadas ao banco, enquanto o condutor ziguezagueia pelo trânsito. Há ainda a versão que transporta cães ou bandejas ou três e quatro caixas de pizzas equilibradas num braço. E, finalmente, a scooter de carga, em que mal se percebem as duas rodas por baixo das caixas e sacos. Tudo isto em vertiginosa velocidade, sem capacete, a falar ao telemóvel ou tagarelando de uma mota para outra. É por isso normalíssimo verem-se crianças de 12, 11 ou mesmo dez anos a guiarem estas motas com natural destreza - as scooters são uma extensão dos seus próprios corpos.
O trânsito em Nápoles é uma atracção turística de pleno direito, muito por causa das scooters que surgem de todos os lados (o único conselho que o funcionário do rent-a-car nos deu antes de nos desejar boa sorte foi simplesmente “olhem sempre para a direita”), mas também porque é uma manifestação da espontânea anarquia da cidade. Apesar disso, ou talvez por causa disso, não vimos nenhum engarrafamento ou acidente. Todos buzinam mas ninguém discute. Não há regras, mas todos respeitam o desrespeito. Ninguém liga às faixas de rodagem, as scooters não querem saber de semáforos ou sentidos proibidos e, se por acaso foste o primeiro a enfiar o carro naquele espacinho passando à frente de toda a gente, que bom para ti, devia ter sido eu a ver isso primeiro. O que em Portugal é considerado chico-espertice, em Nápoles é uma instituição tácita. Resta dizer que, quase de forma incongruente, há uma enorme condescendência para com os peões. Embora até estes tenham de se fazer à vida e atirar-se à estrada se não quiserem ficar o dia todo à espera de atravessar a rua, mesmo estando especados em cima de uma passadeira.
Se é certo que não presenciámos nenhum acidente de trânsito, também é verdade que o estado do parque automóvel é revelador do estilo de condução dos napolitanos e da dificuldade de o fazerem naquelas intrincadas ruas. Não há um único carro ou mota sem mossas, raspões, um retrovisor pendurado, fios descarnados e outros componentes à beira do colapso. E assim seria, não fosse a fita-cola. Tudo ali se resolve com ela. Aliás, a própria cidade passa uma sensação periclitante e sustém-se não se percebe bem como. Com os seus prédios de arquitectura decadente, teias de fios emaranhados, ruas tão estreitas onde dificilmente entra o sol, e paredes que ameaçam ruir a qualquer o momento, toda ela só se mantém graças a uma inventiva engenhosidade: estendais amarrados de uma varanda à outra, rodas de bicicleta a fazer de roldanas puxando baldes com compras, vassouras armazenadas nas paredes exteriores e outras serventias seguras com fita-cola, sempre ela, dizem bem da panóplia de expedientes a que os napolitanos recorrem para resolver qualquer situação. E funciona!
Um golfo, um vulcão, seiscentas igrejas
Geograficamente, há dois factores que sempre marcaram a história da cidade: o golfo de Nápoles e o Vesúvio. Este ficou dramaticamente famoso por em 79 a.C., após uma violenta explosão, ter soterrado Pompeia, Herculano e outras vilas romanas circundantes sob cinzas incandescentes. Visitámos Pompeia à noite e a experiência é marcante, não tanto pela atracção voyeurista da tragédia que ali aconteceu, mas antes porque caminhamos por entre as ruas ainda calcetadas, casas, templos, lojas e outros locais que faziam da cidade o que ela era. É muito fácil imaginarmo-nos a fazer parte desse dia-a-dia.
Se esquecermos que o Vesúvio é ainda um vulcão activo e um dos mais imprevisíveis (nesse aspecto pior do que o Etna, na Sicília), olhar Nápoles a partir do seu largo horizonte de terra em meia-lua por onde entram, calmas e cálidas, as águas do mar Tirreno e sobre as quais se ergue como um sentinela o imponente vulcão, já faz valer a viagem. É obrigatório descer ao fim do dia até à beira-mar de Chiaia e aí ficar a beber uma cerveja, Moretti, de preferência, enquanto o sol desliza no horizonte... e depois mergulhar ali mesmo no porto, ainda que só tenhamos trazido os boxers vestidos.
Compreende-se, então, que a vantajosa localização da cidade tenha favorecido a fixação de povos e civilizações aqui desde muito cedo. Nápoles começou por ser grega e depois romana. Essa influência é ainda bastante evidente no desenho urbano da cidade. No centro histórico, os Decumani Maggiore e Inferiore são ruas que vêm da costa e irrompem rectilíneas pela cidade adentro. Uma delas, conhecida como Spaccanapoli (literalmente “Divide Nápoles”), é uma rua imensa e vertiginosa. São interligadas por uma numerosa teia de pequenas ruas chamadas Cardini. Percebe-se também, principalmente depois de visitar a costa Amalfitana, que os romanos encarassem esta localização maioritariamente como um local de ócio, aí instalando moradias para os seus momentos de prazer. Talvez por isso, no fabuloso Museu Arqueológico Nacional, além da estatuária e dos bem preservados mosaicos e frescos resgatados às cinzas de Pompeia e Herculano, exista também uma rica e variada colecção de artefactos e pinturas eróticas, isoladas na Sala do Segredo.
O centro histórico, Património da Humanidade da UNESCO, é o epicentro turístico por excelência, e onde a gincana se torna quase um acto de sobrevivência para nos desviarmos das scooters, da multidão e do vibrante comércio. É aqui que estão alguns dos monumentos mais emblemáticos de Nápoles, principalmente igrejas – houve quem nos asseverasse que a cidade tem 600 igrejas, o que, carecendo de comprovação, nos pareceu bastante plausível, tal é a religiosidade das suas gentes – e onde a vida nocturna se concentra à volta da Piazza Bellini.
O bairro espanhol, outro dos situ non grato à noite para qualquer guia de viagem, merece bem uma visita sem destino ou mapa na mão, não só porque se torna praticamente impossível destrinçar a apertada malha urbana, mas porque o que verdadeiramente importa em Nápoles é deixarmo-nos levar ao sabor do espanto. E ele torna-se estranhamente constrangedor quando percebemos que este bairro, dos mais pobres da cidade, vive paredes meias com a Via Toledo, onde estão instaladas algumas das lojas de marca mais caras. Desembocar subitamente de uma quelha recolhida e íntima do bairro espanhol para o mar de glamour e cacarejo social desta via exige um exercício de estômago que dificilmente se apazigua. Ajuda continuar a descer essa rua e vermo-nos surpreendentemente desafogados na enorme Praça do Plebiscito, aceitando então que Nápoles também é isto, esta crueza bruta de contrastes que nos deixa rendidos ao seu charme de ser outra coisa que nunca vivemos até aqui termos chegado.
Futebol, Deus e Maradona
Ao fim do terceiro dia a dizermos que éramos portugueses sem nunca surgir o maior desbloqueador internacional de conversas – Cristiano Ronaldo – indicava que algo estava podre no reino napolitano. Foi só quando vimos as paredes garatujadas com impropérios cabeludos à Juventus e rolos de papel higiénico decorados com a cara de CR7 é que percebemos de onde vinha o cheiro. O ódio à Juventus só é ultrapassado pelo amor ao Nápoles e a Maradona, que, tal como Deus e os santos, merece inúmeros nichos de verdadeira devoção religiosa espalhados um pouco por todo o lado.
A que horas fecha a praia?
A costa Amalfitana merece todos os elogios que lhe possamos dispensar, pela sua íngreme beleza, pelo permanente namoro entre o mar e o céu, pelo prazer de conduzir nas suas serpenteantes estradas costeiras, enfim, pela promessa de praias recônditas e únicas. E o problema é mesmo esse: fica-se maioritariamente pela promessa.
Em Agosto o trânsito é impraticável, o estacionamento inexistente, tudo se paga, até a entrada nas praias, e há mesmo aquelas que têm horário de abertura e fecho. Restou-nos um daqueles momentos em que a divina providência iluminou um casal carregando toalhas de praia que saltava um muro no meio da estrada. Foi encostar o carro de imediato, saltar o mesmo muro e descer muitas dezenas de degraus até ao paraíso. Não, não se pagava. E não, também não vamos dizer qual o nome dessa praia, cada um tem de procurar e merecer o seu próprio momento de sonho.
O favor
Só falta mesmo falar do elefante na sala. Quando toca a Nápoles, é impossível não pensar imediatamente na Camorra, nome dado à máfia na região de Campania. Escondida a violência e remetida ao folclore no imaginário de qualquer não italiano, o que se sente de forma subliminar nas conversas com os napolitanos é uma tendência indelével e inata para uma hierarquia baseada no favor. Até o arrumador de carros à beira de uma praia, que nos arranjou um lugar e nos deu algumas dicas, fez questão de demonstrar o seu ascendente sobre nós fazendo-nos anunciar de forma bem audível aos rapazes que guardavam a concessão da praia: “Ó fulano, está tudo bem, estes estão comigo!”, disse-lhes. São estas e outras pequenas solicitudes, tão espontâneas naquela maneira de evidenciar o domínio sobre alguém ou uma situação, que fazem subentender onde se funda a pirâmide.