Longe do coração de Paris, há um novelo de segredos a desfiar

Os bairros parisienses que foram desde cedo berço de poetas e artistas, alcova da vida boémia, vêem agora florescer novos negócios e velhos segredos. Em vésperas de Dia dos Namorados, damos-lhe a conhecer Barbès e Goutte d’Or, um lado desconhecido do romantismo da capital francesa, ainda recatado da azáfama do centro. É a gota de ouro de Paris.

Foto
SARAH SERGENT/TURISMO DE PARIS

Poucos passos são precisos para cruzar realidades nas ruas de Paris: mesmo ao lado de Montmartre, onde a famosa basílica do Sacré-Coeur atrai milhões de turistas todos os anos, fica a região de Barbès e o bairro da Goutte d’Or, uma zona pobre que chega a ser marginalizada pela multiculturalidade e diversidade que acolhe e que são a sua marca de identidade. Mas isso não torna o bairro imune aos efeitos da gentrificação, palavra que vem de mãos dadas com o receio do esquecimento e que permeia os discursos dos guias que nos acompanham.

“Aquilo que me apraz em Paris é a diversidade, se vou ter a mesma coisa em todas as cidades da Europa, não me interessa. É este o meu combate, e é por isso que faço visitas ao lado árabe e africano de Barbès”, conta o guia francês Guillaume Le Roux, enquanto nos conduz pelas ruas quase desertas em torno da Goutte d’Or — “é uma sexta-feira e há uma grande missa às 15h”, explica. Antes, havia uma mesquita para os muçulmanos do bairro, mas como eram tantos alguns acabavam por ficar a rezar cá fora, à porta, o que gerou indignação por parte da extrema-direita. Os planos para construir uma nova mesquita continuam na gaveta.

“Talvez o bairro venha a ser destruído, a gentrificação está por todo o lado e este é o seu lado negro. Mas eu acredito naquilo que faço.” Com as suas visitas (Le Vrai Paris), Guillaume quer fazer os turistas sair do centro histórico, levá-los a outros bairros menos conhecidos, o que considera ser sobretudo importante numa altura em que Paris continua a crescer a um ritmo vertiginoso, mesmo tendo em conta que nunca parou de crescer nos últimos 2000 anos, desde que os romanos ali estiveram e chamaram Lutécia à cidade banhada pelo rio Sena e que era então habitada pelos parísios, povo celta.

Foto
Ruas de Barbès Daniel Thierry/Turismo de Paris

Estamos na margem direita da capital francesa – a sermos literais, seria a margem Norte, mas a corrente do rio Sena galga para os lados da Normandia e esta sempre foi a margem que ficava à sua direita. Cada uma destas ruas, cada edifício, transluz as suas próprias histórias, mesmo que as vidas de alguns deles se comecem a desvanecer com a transformação de lugares emblemáticos em novos bares, restaurantes ou supermercados bio. Deste lado, é uma Paris (quase) sem Torre Eiffel, longe dos belos lugares-comuns parisienses, com muito ainda por explorar e conhecer.

Mesmo no meio do cinzento inverniço que já se faz sentir em meados de Dezembro, as ruas de Barbès são coloridas, cortesia das roupas, das montras, das frutas expostas nas bancas, e da variedade de línguas que nos chegam aos ouvidos. O Boulevard Barbès é um dos pontos nevrálgicos deste 18.º bairro de Paris. Ao lado, mergulhando-se nas ruelas da Goutte d’Or (diz a lenda que o nome vem do dourado do vinho produzido na região), o ambiente é de bairro, de gente que passa pela rua e se cumprimenta, de pequenos negócios. Há mercearias, talhos, quinquilharias, frutarias e floristas — até com gatos à porta que convidam a entrar.

Mas no meio destes recantos há um passado de violência, de droga, de pobreza. Para combater a imagem negativa que ainda perdura do bairro e para ajudar os artesãos locais a vingar, foi criada há oito anos a estrutura Les Gouttes d'Or de La Mode et du Design, que é composta por uma associação (para a criação e venda) e uma cooperativa (para produção nos ateliers de costura, todos africanos) – com rendas de lojas mais baratas e divulgação junto de grandes marcas.

Uma das artesãs que pertence à associação é a brasileira Márcia de Carvalho, que mora no bairro há 17 anos. O negócio, à venda no seu atelier Chaussettes Orphelines (“meias órfãs”), na Rue des Gardes, começou há dez anos, altura em que se apercebeu da quantidade de meias sem par que tinha por casa. Decidiu desfazê-las e criar com os fios outras meias e artigos de lã; depois, apresentou a colecção no Grande Prémio da Criação da Cidade de Paris. “Foi um sucesso”, conta à Fugas, em português, dizendo que o que a moveu “foi mais a originalidade do que a reciclagem”. Agora, recebe meias de todo o mundo – espalhadas pelo atelier, vêem-se caixas, cestos e até envelopes com meias lá dentro. As meias são lavadas, tratadas e desfiadas por uma máquina, criando um fio 100% reciclado.

Foto
Meias feitas a partir de fio reciclado CHAUSSSETTES ORPHELINES

Além da reciclagem e da economia circular, as suas criações têm também um lado de apoio social: Márcia trabalha com crianças carenciadas – algumas delas estão sentadas a costurar no atelier enquanto conversamos – que “aprendem a reciclar e a fazer coisas ligadas às técnicas de artesanato têxtil”, ajudando e sendo também ajudada por mulheres em situação de sem-abrigo. E a mudança vai-se sentindo. “Todo o mundo trabalha junto para melhorar a imagem e para que o bairro seja um lugar mais agradável. Através do comércio e das nossas acções (dos comerciantes e da câmara), o bairro tem-se tornado mais atractivo.”  

Num país que valoriza a produção nacional, esta simbiose é um dos aspectos positivos: “Isto não só é fabricado em França, como é fabricado em Paris – e ao mesmo tempo temos aqui um lado de ajuda e solidariedade social”, resume-nos o coordenador da associação, Christian Pechereau – que concilia a parte financeira, jurídica, comercial e de relações públicas. “Mas não sei nada de costura”, brinca, enquanto desce a Rue des Gardes, uma rua quase só destinada às lojas da Goutte d’Or, porta sim, porta sim.

Aumentar

Para pertencer à associação, é preciso ter alguma ligação com o bairro: ora lá ter nascido, ora morar lá, ora trabalhar lá. O bairro da Goutte d’Or fica a poucos metros do Boulevard Barbès e é “um bairro com dificuldades sociais e económicas”, o que faz com que os artesãos sejam subsidiados pelo Estado, pela região ou pela câmara municipal. É por isso “muito importante esta vertente territorial do projecto”, diz-nos Christian.

“De um lado temos o bairro de Montmartre, muito conhecido, muito turístico, onde todos os parisienses vão. Mas ninguém entra na Goutte d’Or”, acentua Pechereau. Dos habitantes de Barbès, mais de 40% não são franceses (dados do Insee, Instituto de Estatísticas) e muitas das gentes do bairro vieram do Magrebe e da África subsariana na altura da descolonização. Instalaram-se aqui e começaram a vender tecido africano, o wax, e a criar os seus próprios ateliers de costura. “Mas muitos estavam em situação irregular e outros não tinham os papéis em dia, não descontavam para os impostos”, conta Christian. Esta cooperativa funcionou como “um motor” para conectar tudo.

Foto
MARC BERTRAND/TURISMO DE PARIS

Os benefícios, diz, são muitos. “A cooperativa traz-nos mais jornalistas, traz eventos, as pessoas sentem-se menos isoladas. Há menos tráfico de droga, mais presença policial, a câmara municipal está a ajudar a revitalizar o bairro. Quando não há nada, a criminalidade sai à rua. Se tivermos boutiques e gente a passar, tudo muda”, acredita. Ainda assim, reconhece que à noite a zona possa ser perigosa e que é preferível visitá-la durante o dia e sem grandes sinais visíveis de riqueza. “Depende das horas, e das ruas. E a verdade é que tudo muda num perímetro muito curto.” Para Márcia, “o bairro é uma coisa assim ainda meio secreta” e tem conseguido transformar-se para melhor por este lado da moda e do design.

Antes (como quem diz há dois séculos), esta zona de Montmartre e Barbès eram aldeias e pequenas vilas, separadas de Paris por um muro que taxava todos os produtos agrícolas (e o vinho) que entravam em Paris. Era o Mur des Férmiers Generaux, algo como muro dos agricultores gerais. Cá fora, sem impostos, o vinho era mais barato e foi isso que esteve na génese de muitos bares e restaurantes, locais de prostituição e de diversão. Em 1860, o imperador Napoleão III decide duplicar o tamanho de Paris, acabando com o muro e integrando todas estas “vilazinhas”. Em conjunto com o prefeito Georges-Eugène Haussman, cujo nome ecoa na arquitectura parisiense, Napoleão III quis ainda fazer uma “green city” antes do seu tempo. Inspirado pelo exemplo britânico, investiu em parques e hoje Paris é uma das cidades do mundo com mais árvores (segundo a câmara de Paris, são mais de 500 mil). Todas as avenidas de Paris têm árvores, à excepção de uma: a Avenida da Opéra.

Foto
AMÉLIE DUPONT/TURISMO DE PARIS

Enquanto voltamos a caminhar com Guillaume em torno da igreja Saint-Bernard de La Chapelle, a uns 200 metros da avenida principal Boulevard Barbès, o guia francês pára abruptamente em frente a um portão e toca à campainha de um “lugar nada suspeito, mas mágico”. É uma livraria de obras de colecção, alguns raros e antigos, primeiras edições autografadas. Chama-se Chez les Libraires Associés, fica na rua Pierre l’Ermite e pode ser visitada de terça a sábado, só durante a tarde. Permanece tão desconhecida que não tem montra e não há sinal na porta (dica: é a porta número 3); para se entrar, tem de se tocar à campainha.

Lá instalada há uma década, a livraria tem estantes que se alongam até ao tecto, armários, vitrines, mesas recheadas de livros — e também há espaço para exposições no piso inferior, que faz lembrar as masmorras de um castelo, com arcos em pedra e tijolo-burro. Na altura em que a visitámos, havia obras de desenhadores expostas (André François, David Wiesner, Eleonore Schmid, Gary Kelley), mas o tema muda todos os meses e não cede a preconceitos: já houve até exposições de obras eróticas e de manga.

Montmartre, a aldeia de Paris

Subindo de Barbès para Montmartre, o cenário muda. Há ruas pequenas, poucos carros, buracos na estrada, sentidos únicos e nem um arranha-céus. “Chamamos aldeia a Montmartre porque antes era verdadeiramente uma aldeia”, explica-nos o presidente do gabinete de turismo de Montmartre, Alain Leiblang, do miradouro por onde se estende parte da cidade de Paris, com os seus tradicionais telhados cinzentos. Antes de Montmartre ser anexado a Paris e de a Basílica do Sacré-Coeur ser construída (entre 1871 e 1914), as gentes de Paris e de fora saíam para ali para se divertirem, culpa do vinho barato e da garantia de diversão. Havia casas simples, ninguém queria morar ali, “mas muitos artistas vinham para cá porque não tinham dinheiro e aqui não ficava assim tão caro". "E quando queriam comer ou beber, pagavam com quadros”, diz Alain, dando como exemplo o caso do pintor Maurice Utrillo, que oferecia quadros que hoje valem milhões.

Fotogaleria
TURISMO DE MONTMARTRE

A pequena aldeia gaulesa que aqui deixa entrar todos não perdeu a sua aura artística. Na Place du Tertre, de onde se vê o Sacré-Coeur à espreita, há pintores sentados que espelham a paisagem nas suas telas e vendem as suas obras, lado a lado com caricaturistas e com as esplanadas dos restaurantes e bares. Antes, Montmartre não era um bairro atractivo, mas agora “moram aqui muitas pessoas com profissões ligadas à arte, à escrita, à pintura ou à televisão”. A população também mudou muito. Visto à lupa, Montmartre é pequeno e lá vivem cerca de 25 mil habitantes dos dois milhões que Paris deixa habitar no seu coração. “E quem mora em Montmartre, sabe porque é que vem morar aqui: é pitoresco, tem história, tem património.”

Foto
SARAH SERGENT/TURISMO DE PARIS

Os caminhos por onde passearam Picasso, Van Gogh, Renoir e Monet são muito mais calmos do que os do centro da capital, ainda que aqui esteja o terceiro monumento mais visitado de Paris (depois da Torre Eiffel e da Catedral de Notre Dame), que atrai todos os anos mais de dez milhões de turistas — o equivalente à população de Portugal. Longe da basílica, quase só o chilrear dos pássaros se ouve nas ruas pacatas e gélidas. “Por norma, não há ninguém antes das 10h nem depois da meia-noite”, conta-nos Alain.

Por trás do Museu de Montmartre, há uma vinha que se diz ser a mais antiga de Paris e que permite produzir todos os anos cerca de 900 garrafas do vinho Le Clos de Montmartre, cujo lucro reverte para ajudar as crianças carenciadas do 18.º bairro (a que pertence Montmartre e Barbès). O terreno das vinhas está fechado ao público, mas pode ser visto por entre a cerca que o envolve. Umas ruas abaixo, perto da estação de metro Abbesses, fica o mur des je t’aime (o muro dos "amo-te" ou muro do amor), uma parede revestida de palavras de amor, manuscritas e traduzidas em quase todas as línguas.

Prova de que o empreendedorismo não é de agora, alguns proprietários de moinhos em Montmartre que já não produziam farinha decidiram no século XIX transformá-los em cabarets, começando a marcar o lado boémio desta banda da capital. Comia-se, bebia-se, dançava-se. Uma das pinturas do francês Pierre-Auguste Renoir, Le bal de le Moulin de La Galette, retrata precisamente esse ambiente de folia. Este moinho que passou da farinha para os cabarets e agora para a restauração ainda pode ser hoje visitado em Montmartre, na Rua Lepic. Se continuarmos a descer a rua, encontramos o icónico Moulin Rouge, que abriu portas no mesmo ano em que foi construída a Torre Eiffel e que nunca foi um verdadeiro moinho: “Como dizemos em francês, o Moulin Rouge nunca moeu nada que não dinheiro”, ("Le Moulin Rouge n’a jamais rien moulu d’autre que de l’argent"). Os preços para o espectáculo rondam os 110 euros, 180 se se incluir o jantar.

Foto
SARAH SERGENT/TURISMO DE PARIS

Para sair à noite, South Pigalle (SoPi, abreviado à boa maneira francesa) é o caminho a seguir. É o sítio da moda, dizem-nos que é “trendy” com um “r” bem carregado. Foi um dos primeiros bairros a sofrer os efeitos da gentrificação, com o centro a avançar para as zonas limítrofes e a transformar os negócios à sua passagem. “Todos os bares tornaram-se bares de cocktails. Pensa-se que a rua é cool, mas era uma rua de prostituição e de casas de alterne e de sex shops. Não era uma zona sexy, onde se quisesse ir”, relata Guillaume, enquanto os últimos raios de sol morrem no horizonte. Fala da incandescente e burguesa Rue Frochot, onde tudo foi transformado em bares, restaurantes e discotecas, à excepção de uma única sex shop que ainda se mantém de pé; de resto, só o bar Dirty Dick manteve o nome original, apesar da transformação. No cimo da rua, já perto da Praça Pigalle, o cabaret Narcisse deu lugar a um supermercado bio. Um apagar de história, lamenta o guia, já que quem vê o supermercado não consegue deslindar a história do local, que não está sinalizado e aparenta ser um simples edifício ao olho incauto de quem por lá passa.

Mesmo abaixo de Pigalle fica o bairro de Nova Atenas (Nouvelle Athènes) – é o berço do romantismo, com um passado recheado de clubes literários e que era também a morada de eleição dos artistas. Muitos dos grandes nomes da Paris oitocentista moravam aqui: o escritor Alexandre Dumas, Victor Hugo, o compositor Chopin, o pintor Van Gogh, o pintor Eugène Delacroix. Pelas ruas, são frequentes as placas que indicam o período em que certo artista viveu naquele apartamento, naquela zona. Só a Square d’Orleans – isolada dos barulhos citadinos – albergava muitos dos artistas na década de 1840 e era palco de festas onde centenas de garrafas de vinho chegavam em catadupa, assim como as centenas de celebridades convidadas. Ali perto, escondido por detrás de um recatado portão verde entre os números 14 e 18 da Rue Chaptal, está o Musée de La Vie Romantique, alojado naquilo que era uma vivenda discreta onde se faziam encontros literários com George Sand ou Frédéric Chopin. Agora, além do pequeno museu, há ainda uma acolhedora salinha de chá improvisada numa estufa verde envidraçada.

A Fugas viajou a convite da Transavia e do Turismo de Paris