Este Gato arranha bem (e a crítica musical já não é o que era)

Será o crítico musical mais acutilante da actualidade um Gato, de seu nome Mariano, que acompanhamos em tiras de banda desenhada? Críticas Felinas, de Tiago da Bernarda, não responde. Não precisa. Interessa é ler as suas 144 páginas

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É, sem margem para qualquer dúvida, um gato. Preto, mas com pêlo branco no focinho, na barriga, nas patas e na ponta da cauda – e com uns bigodes curtinhos, qual penugem humana sobre o lábio. É um gato, claramente. Um ser que sabe o que quer da vida e não tem qualquer pudor em exprimi-lo. Um animal que não se cansa de pôr as garras de fora, que não quer saber o que pensamos dele, que se está borrifando para o desconforto que possa causar mas que, ao mesmo tempo, aprecia o conforto, as coisas boas da vida, o prazer físico e estético, uma mão a passar-lhe pelo lombo. Um gato, portanto. Só que não exactamente.

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O Gato Mariano vive o meio, faz parte dele, e nada lhe escapa: festivais, imprensa, ética independente vs cifrão capitalista, polémicas do momento na internet

Um gato é um gato é um gato. Este é Mariano, Gato Mariano, nasceu em 2014 e, por esta altura, quem está atento às movimentações da cena musical independente portuguesa conhece-o bem (está nas redes sociais todas, caramba). A internet está recheada de gatos a fazerem o que os gatos fazem (a internet adora gatos, não é segredo), mas este não é um gato como os outros. Na história da BD, estes animais têm um lugar especial – pensemos no pioneiro Krazy Kat, de George Herriman, lembremos o desbragado Fritz The Cat de Robert Crumb. Já gatos da banda desenhada que pratiquem o ofício da crítica musical, isso é certamente raro.

O Gato Mariano é, portanto, um gato - sem margem para qualquer dúvida. É, também, o crítico musical mais acutilante do cenário português, uma criação de Tiago da Bernarda, nascido em 1990 e licenciado em Ciências da Comunicação a quem o felino caiu no colo entre estágios nas secções de cultura da imprensa nacional. Sabe-o quem acompanha as suas Críticas Felinas publicadas online há cinco anos e pode testemunhá-lo agora quem o descobrir em Críticas Felinas (2014-2018), livro que se junta à colecção Mercantologia, da Chili Com Carne, que reúne em 144 páginas uma selecção das tiras criadas ao longo desta meia década.

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É na Casa Independente que o encontramos. Foi naquele espaço lisboeta no Largo do Intendente que, a 19 de Janeiro, Tiago da Bernarda fez o lançamento de Críticas Felinas com um concerto do colectivo Colónia Calúnia e dos Iguana Perigosa (ou seja, Iguana Garcia e PERIGO) e com a inauguração de uma exposição do seu trabalho, já terminada. Ter o Gato Mariano como promotor de concertos, e com os Colónia Calúnia, colectivo hip hop muito elogiado nas suas tiras, como protagonistas, nem foi novidade – um ano antes, já montara, também com os autores de [caixa] como protagonistas, uma noite nas Damas, no bairro da Graça, em Lisboa. Ou seja, chegados a este ponto, o Gato Mariano, o crítico, o observador atento da realidade musical, já se integra no cenário também como actor. “Quero explorar isto ao máximo para conseguir fazer tudo o que antes gostaria de ter feito, incluindo fora da banda desenhada”, afirma.

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O Gato Mariano é o crítico musical mais acutilante do cenário português, criação de Tiago da Bernarda, nascido em 1990 e licenciado em Ciências da Comunicação Nuno Ferreira Monteiro

Quando Tiago da Bernarda nos disse o que citamos no parágrafo anterior, já a conversa com o Ípsilon se aproximava do fim. Tiago estava quase a confessar não ter quaisquer prognósticos quanto à longevidade da sua criação: “O [Robert] Crumb decidiu matar Fritz The Cat quando fizeram o filme [em 1972]. Portanto, quando fizerem o filme do Gato Mariano, eu enforco-o”, gargalha, antes de acrescentar que “não há necessidade de definir um prazo. A viagem é que conta”. Portanto, a entrevista estava quase a chegar ao fim e faltava ainda um par de dias para que Marcos Farrajota, autor de banda desenhada e fundador da Chili Com Carne, nos falasse em conversa via mail da singularidade da personagem que a associação e editora compilou em livro. “A Chili Com Carne admira o charmoso gato por ser justamente algo inesperado na banda desenhada portuguesa”, começou por escrever o autor de Free Dub Metal Punk Hardcore Afro Techno Hip Hop Noise Electro Jazz Hauntology (2015), incluído também na colecção Mercantologia da Chili Com Carne. “Raramente houve obras em volta da música em Portugal, mas todas cumpriram o zeitgeist do momento – as punkettes de Relvas com Sangue Violeta no Se7e nos anos 1980, o desesperado Ruivo de Diniz Conefrey no Blitz no início dos anos 1990, os ‘alternativos’ anos 1990 com Loverboy de Marte [pseudónimo do próprio Farrajota] e João Fazenda [também publicados na Blitz], etc… Mas nesta década só ele se meteu à séria com a música”, afirma.

Fê-lo de forma tão hábil que contactamos Carlos de Jesus, vocalista e guitarrista dos portuenses Sunflowers, banda punk’n’roll que acolhe o apreço do Gato Mariano e que lançou em 2018 o seu segundo longa-duração, Castle Spell, e ele informa-nos que recebera o nosso contacto quando viajava no autocarro a caminho da livraria Mundo Fantasma, no Porto, para comprar um exemplar de Críticas Felinas – o que escreveu a seguir podia estar numa tira do livro: “Não cheguei a tempo e a loja estava fechada – é a história da minha vida”. Sobre o Gato Mariano, tem o seguinte a dizer: “Adoro o seu aspecto, o seu gosto musical, o seu sentido de humor, o seu ‘sass’. Penso que é dos poucos críticos que leio com regularidade e é das poucas opiniões que realmente me importam quando lanço alguma coisa”.

Tiago da Bernarda meteu-se com a música de forma tão inspirada que mesmo aqueles que são alvo da sua sátira têm por ele apreço e admiração. É o caso de Manuel Fúria. O ex-líder d’Os Golpes, autor a solo de Contempla os Lírios do Campo e, mais recentemente, de Viva Fúria, surge retratado numa tira enquanto morto-vivo erguendo-se da terra como em filme de terror – “conservadorismo é o novo punk”, diz ele pela pena de Tiago da Bernarda. Diz-nos Fúria: “Fui duas vezes alvo do Sr. Mariano e em ambas fui motivo de chacota. Se já tinha alguma capacidade para não me levar demasiado a sério e para conseguir rir de mim próprio, creio que as ‘arranhadelas’ do Gato ajudaram a aprimorar isso, e logo eu que combato a ironia e que faço coisas que são para ser levadas a sério”. Para Manuel Fúria, “o Gato Mariano, para além de recuperar o modelo da tira de banda desenhada, para além de ter graça na maneira como aborda a crítica, faz-nos rir e consegue fazer-nos rir de nós próprios e nesse sentido presta um serviço valoroso em prol da saúde espiritual no ambiente abafado que se respira nos dias que correm”.

Tiago da Bernarda há-de lamentar, ironicamente, claro, não haver levantamentos de gente irada convocando o Gato para duelos ao pôr-do-sol. “Não sei o que é preciso fazer mais para [os músicos] me prometerem porrada. Se é calhar é por serem bonecos, não levam a mal. De qualquer modo, julgo que a minha crítica nunca passa pelo insulto gratuito”. Portanto, a entrevista com Tiago da Bernarda estava quase a chegar ao fim, dizíamos alguns parágrafos acima, e ainda não tínhamos contactado Marcos Farrajota, Carlos de Jesus ou Manuel Fúria. Voltamos ao início.

Animais engraçados

A génese do Gato Mariano estará no muito jovem Tiago da Bernarda que, em Alcobaça, seguia com devoção de fã empenhado as bandas locais e demais bandas portuguesas que passavam pelo palco do bar Clinic. Irmão de um músico que hoje encontramos nos Brass Wire Orchestra e com uma irmã que trabalhou largos anos numa editora multinacional, olhava para o palco e, nas bandas da cena independente portuguesa, via “super-estrelas”: “Comprava todos os CD, o merchandise e os posters autografados dos Loto, mas nunca tinha ouvido New Order na vida, portanto para mim aquilo era revolucionário. Os Bunnyranch [de Kaló, anteriormente baterista dos Tédio Boys] iam lá e eu não conhecia Stooges, nem sequer conhecia o que tinha vindo de Tédio Boys. Memorizava as letras todas, e quem é que sabia as letras dos Bunnyranch? Nos concertos percebia que nem o Kaló as cantava como nos discos”. Ou seja, no coração do Gato bate também o coração ingénuo de um adolescente a apaixonar-se por música e pelas bandas que a fazem. Determinante, naturalmente, foi o que ele cresceu depois.

Tiago da Bernarda mudar-se-ia para Lisboa, onde hoje vive, para estudar Ciências da Comunicação na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Curso concluído, tentaria o ofício de jornalista em estágios na secção de Cultura de jornais como o PÚBLICO, o i ou o Expresso. “Na altura estava muito focado em banda desenhada, especialmente depois de ver no CCB [em 2011] a exposição [antológica de banda desenhada portuguesa] Tinta nos Nervos. Encontrei aí uma espécie de escape que me ajudou a expressar ideias que não conseguia através dos estágios em que estive integrado”. Uma reportagem sobre o panorama da banda desenhada no país, assinada no PÚBLICO, pô-lo em contacto com os agentes do meio. “Os nomes de referência que tinha visto na exposição falavam agora comigo e incentivavam-me a projectar estas novas ideias. E então surge o Gato Mariano”.

Reúne-se a vontade de criar uma personagem antropomórfica, com um objectivo específico – “há muito historial de ‘funny animals’ no universo da banda desenhada, partindo de uma certa subversão à estética Disney para falar de temas de que a banda desenhada convencional não fala” -, à saturação “com as convenções da crítica musical” e com a percepção de que o momento que se vivia “na música independente portuguesa não estava a ter o destaque merecido nos media mainstream”. Empolgado pelo espírito “do it yourself” vivido tanto na edição como na música independente, lançou-se à criação do Gato Mariano “sem qualquer base de banda desenhada, sem qualquer referência para além do que gostava de ler”. Exemplifica: “Não sabia limpar a sujidade do papel, incluía o texto com o Paint…”.

Críticas Felinas, desde a primeira tira, uma crítica a Diffraction/Refraction, dos You Can’t Win Charlie Brown, à última, em que o vemos render-se, à Gato Mariano, à cultura meme, mostra como foi evoluindo o traço, a organização do espaço e a abordagem temática. “Houve várias fases dentro das minhas tiras, condicionadas pela forma como via a crítica musical. Como no início ainda queria uma aceitação dentro desse círculo, o que nunca consegui a partir do jornalismo convencional, o texto estava mais próximo dessa convenção e a imagem complementava-o. Depois, a imagem começa a ter mais foco e a crítica surge a partir de metáforas, de diálogos, da ligação entre o espaço e o tempo, e não tanto do texto em si. Posteriormente, decido que estou a dar mais poder do que devia à crítica musical e sigo um caminho mais de sátira, que é onde estou neste momento”.

Neste momento, os discos em si já não são o centro total da acção. O Gato Mariano vive o meio, faz parte dele, e nada lhe escapa: festivais, imprensa, ética independente vs cifrão capitalista, polémicas do momento na internet (eis a abordagem a uma crónica de Fernando Ribeiro, dos Moonspell), cultura pop não necessariamente musical (como escapar a Mapplethorpe em Serralves?). É um trabalho contínuo e convém estarmos atentos e sermos muito cuidadosos se quisermos escapar-lhe –não foi a caso do autor deste texto, que se entregou inadvertidamente a ser alvo do gozo exposto a todos na tira publicada nestas páginas.

Com amor e humor, com sarcasmo e sensibilidade, com olhar atento e aprofundado, com crescente poder de síntese e um traço que foi ganhando eficácia pela simplificação, o Gato Mariano é o homem, perdão, o bicho, que está por dentro a olhar de fora. Nas suas tiras encontramos todos os que vão fazendo o presente da fervilhante música independente portuguesa – de B Fachada a Conan Osiris, de Orelha Negra aos Colónia Calúnia, dos PAUS aos Cave Story – e encontramos a realidade vivida e problematizada dessa mesma cena em tiras habitadas por músicos, jornalistas, agentes, personagens-tipo que representam ouvintes, comentadores online, enfim, gente no geral – alguns têm nome e foram recorrentes numa primeira fase, como o exasperante, cínico e risível Hipster Seboso da Internet, outros não, como a enjoadinha (ou rapariga sem paciência para baboseiras pretensamente profundas, dependendo do ponto de vista) que quase sofre um colapso por tanto revirar os olhos enquanto o Gato faz a sua crítica elaborada, referência a David Lynch incluída, do Worst Summer Ever de Bruno Pernadas.

O segredo, para além do traço limpo e apelativo, para além da qualidade do texto, para além do amor óbvio pela música e do conhecimento que sobre ela revela, está na capacidade de Tiago da Bernarda ter feito do universo d’O Gato Mariano em espaço que acolhe todos, que abraça todos, que descasca em todos, que se ri de e com todos, que não quer convencer ninguém, antes estimular "o pensamento crítico". O Gato é único, mas, para além dos músicos e figuras públicas retratadas, a verdade é que todos conhecemos alguém como aqueles que com ele interagem. Acontece que nunca os tínhamos visto expostos assim, de forma tão certeira, nas suas convicções e contradições, na sua glória e na sua pequenez, de uma forma que não gera fúria ou revolta, antes empatia. “Gosto de gozar com punks ou os hipsters porque eu próprio estou dentro do meio e rodeio-me dessas pessoas. Para mim é fácil fazer esse tipo de humor e, não querendo utilizar o termo, se calhar é mais ‘relatable’ dentro da comunidade musical”, diz Tiago da Bernarda. "Consigo perceber que fora da internet já há pessoas que estão a par do meu trabalho, mas a cultura pop portugesa é o professor Marcelo telefonar para a Cristina [Ferreira]. Isto [a cena independente] continua ser um pequeno nicho".

O título do livro é descritivo da forma mais concisa possível - Críticas Felinas (2014/2018). O que encontramos no interior é mais vasto: é a música portuguesa actual, ligada em rede, sintonizada com o mundo, em todas as suas vertentes. É muito para um bicho só, mas este que se chama Mariano dá conta do recado sozinho. Abençoado felino, o sacana do gato.