Caso bairro da Jamaica: julgamento de detidos em manifestação começa de forma conturbada

Uma testemunha dos jovens foi levada por um agente para uma sala do Tribunal de Pequena Instância, em Lisboa, para ser identificado por causa da "prática de um crime". Outro homem mostrou indignação acusando o agente de "assédio". Julgamento prossegue. Arguidos acusados de vários crimes entre eles ofensa à integridade física e participação em motim.

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Manifestação na Avenida da Liberdade, em Lisboa, acabou com violência policial Nuno Ferreira Santos

O julgamento dos quatro jovens detidos na manifestação de dia 21 de Janeiro, em sequência dos conflitos da PSP com moradores do bairro da Jamaica, Seixal, e acusados da prática de vários crimes, incluindo ofensas à integridade física, começou nesta quinta-feira de forma conturbada. 

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O julgamento dos quatro jovens detidos na manifestação de dia 21 de Janeiro, em sequência dos conflitos da PSP com moradores do bairro da Jamaica, Seixal, e acusados da prática de vários crimes, incluindo ofensas à integridade física, começou nesta quinta-feira de forma conturbada. 

Num intervalo da sessão, ouviu-se em tom alto a indignação de um homem contra o facto de uma testemunha abonatória dos arguidos, L., ter chegado ao Tribunal de Pequena Instância Criminal no Campus de Justiça, em Lisboa, e sido levado para uma sala à parte para ser identificado pela PSP. Foi-o por causa da acusação da prática de um crime, explicou o intendente Luís Moreira, do Comando Metropolitano de Lisboa, aos presentes que saíram da sala de audiência para ouvir o desacato — o intendente está a ser ouvido como ofendido.

A atitude do agente gerou indignação de um homem, que questionou a razão pela qual o polícia não tinha feito a identificação à frente de toda a gente. Acusou-o de estar a “assediar” L..  

A discussão durou uns minutos, e os ânimos exaltaram-se, obrigando à intervenção da oficial de justiça e de outros funcionários do tribunal. O jovem L. não quis prestar declarações ao PÚBLICO. Mas outra testemunha que assistiu ao episódio, Geovani Barros, disse que o agente se dirigiu a L. e pediu-lhe para “dar uma palavrinha”. 

A sessão foi interrompida a pedido do advogado dos jovens, Vasco Barreira. O advogado queria mais tempo para ler a acusação do Ministério Público (MP), uma vez que a conheceu apenas durante a leitura da mesma na sessão. O advogado tinha requerido o adiamento da sessão para um prazo máximo de dez dias para exercer o contraditório, algo que o Ministério Público recusou — mas com o qual acabou por concordar depois de Vasco Barreira argumentar que a acusação continha factos diferentes dos do auto de notícia e omitia outros.

Nenhum dos jovens é do bairro da Jamaica, no Seixal.

Dois dos arguidos são acusados pelo MP de vários crimes, entre eles ofensas à integridade física e participação em motim. Outros dois jovens estão acusados de injúrias e de ofensa a integridade física qualificada em forma tentada.

O despacho do MP acusa dois jovens de terem atirado pedras aos agentes durante a manifestação na Avenida da Liberdade, em Lisboa, um outro jovem de ter atirado uma garrafa de água e outro ainda de injúrias. Refere também que causou danos nos escudos e num capacete no valor de mais de 1700 euros.

O protesto e a origem

O protesto de dia 21 começou no Terreiro do Paço, em frente ao Ministério da Administração Interna, prosseguiu até ao Marquês de Pombal e no regresso pela Avenida da Liberdade acabou com a polícia a atirar balas de borracha e a acertar em alguns manifestantes — a PSP justificou-o com a necessidade de dispersar e de se defender de “pedras” que lhe foram atiradas.

O motor da manifestação foi um vídeo que se tornou viral, gravado no dia anterior, onde se vê um grupo de agentes da PSP, pelo menos sete, a chegar numa carrinha. Primeiro um dos polícias aproxima-se de um homem que está a agarrar no braço de um rapaz e, sem que ele tenha reagido, dá-lhe dois socos e uma joelhada (é Fernando Coxi, 63 anos). O filho Hortêncio agride os polícias — será depois detido e vai a tribunal para julgamento sumário. A família reage: a mulher, Julieta Joia, 52 anos, vai em sua defesa e é empurrada por um polícia, cai ao chão de imediato; a filha também intervém no conflito e fica igualmente deitada, depois de empurrada.

A família acusou os polícias de uso excessivo e injustificado de força.

“Não arremessei uma única pedra”

Todos os arguidos no julgamento que está a decorrer nesta quinta-feira, entre os 22 e 31 anos, negam as acusações — e três dos quatro referem que os agentes os ameaçaram por estarem a filmar a manifestação de dia 21. O primeiro a prestar testemunho em tribunal, B. A. disse que os desacatos começaram quando a polícia começou a disparar balas de borracha.

Já o intendente Luís Moreira afirmou que a ordem para o disparo foi dada depois da agressão aos agentes e não como forma de dispersar os manifestantes que estavam a circular na faixa de rodagem e a quem tinha sido indicado para irem para o passeio. Primeiro, disse ainda, a indicação do agente foi que os disparos fossem para o alto, mas depois em direcção a zonas do corpo onde não pudessem ser letais já que as pedras continuarem a ser atiradas.

“Não arremessei uma única pedra”, afirmou B. A. “Fui apanhado entre o fogo de ambas as partes”, ou seja, entre as balas da polícia e as pedras lançadas por pessoas com a cara tapada, vindas da zona perto de uma praceta perto do Hotel Tivoli, contou. Todos os intervenientes situam o arremesso das pedras nesta zona, uns dizem que foi mais junto à praceta, outros no passeio.

T. disse ter feito exactamente o que lhe pediram quando os polícias o abordaram: encostar-se à parede. “Eram mais de cinco”, afirmou. Acusou também um agente de o ter atingido com um cassetete, de o terem atirado ao chão e de o terem detido. “Confundiram-me com a pessoa que andavam à procura”, explicou. 

J. contou que viu o arguido B. A. a ser detido e que filmou o momento em que o atiraram para o chão. Também localiza o arremesso de pedras por “detrás” do Tivoli. Ao detê-lo, prosseguiu J., a polícia disse-lhe que tinha a gravação dele a atirar pedras. Acusou ainda os agentes de lhe terem chamado “preto do car…”, “vai para a tua terra” quando o transportavam. 

O terceiro arguido, B.F., referiu que nem sequer tinha participado na manifestação, mas que se deparou com o acontecimento vindo do local de trabalho. Ia com o telemóvel na mão para fazer uma chamada vídeo e filmar o que se estava a passar mas contou que ouviu agentes com cassetetes a dizer: “Apanha esse." E fugiu. Foi detido e recebeu assistência médica porque os agentes quase lhe “partiram o braço”, relatou. Ficou ainda com uma lesão na cabeça. Está acusado de ter atirado uma garrafa de água de 1,5 litros aos agentes. 

Também T. negou todas as acusações, nomeadamente o ter gritado aos polícias “racistas filhos da puta”, como acusa o despacho. Testemunhou a detenção de B. A, começou a filmar e um polícia, segundo diz, empurrou-o e disse que ele não podia fazê-lo. Mandou-o para casa. Ele questionou a atitude do agente, acabando por mostrar o seu passaporte e ser detido. “Estávamos na carrinha e disseram que uma mentira deles vale dez verdades nossas”, acusou. 

“Nem o desfile nem a manifestação tinham sido comunicados"

Já o intendente Luís Moreira apresentou uma versão completamente diferente dos factos. Disse que a PSP tinha tido a informação de que as pessoas estavam a guardar pedras nas mochilas ainda quando estavam no Terreiro do Paço. “Nem o desfile nem a manifestação tinham sido comunicados."

O comando preparou-se para a eventualidade de cortar o trânsito. Quando estavam a tentar desviar os manifestantes para o passeio começaram a ser “atingidos por pedras”. “Dei ordem de dispersão porque havia perigo”, afirmou. “Fui protegido por um escudo."

Apesar de não conseguir identificar ninguém que tenha atirado pedras, o intendente presenciou duas detenções, a de B. F. e a de T.

O agente André Araújo, que ficou com uma lesão no joelho, não conseguiu identificar nenhum dos arguidos presentes. “Era muita gente a atirar pedras."

Só um dos agentes ouvidos em tribunal participou directamente na detenção dos dois homens acusados de atirar pedras. Trata-se de Hugo Rodrigo da Palma Santos, do Corpo de Intervenção, que estava a chefiar uma equipa de 12, e que começou por dizer nesta quinta-feira que tinha a certeza absoluta de ter visto um dos arguidos, J., a atirar pedras; mas em relação a B. A. foi “dúbio”. Disse que tinha apenas “quase a certeza”.

No final recuou para garantir ter “100% certeza” em relação a B. A. No início das suas declarações contou que viu B. A. no grupo que estava a lançar pedras. Só que o grupo fugiu, ficou só ele, e a pedra que lhe acertou nas costas enquanto protegia o intendente Luís Moreira foi lançada por ele ou por “alguém”. Não soube precisar quantas pessoas estavam nesse grupo, se 5 se 50.

Já em relação a J. referiu que o apanhou em “flagrante delito” a atirar pedras. “Deixei-o andar, fixei-me nele.” Depois da detenção, diz que perguntou: “Achas que fizeste bem?’ E ele disse que não.” Alguma pedra bateu no corpo dos seus homens?, perguntou. “Não sei, são centenas de pedras a caírem”, respondeu.

O julgamento prossegue no dia 21 de Fevereiro.