Um retrato de mulher à sombra de Oliveira iluminou a Berlinale

A Portuguesa, de Rita Azevedo Gomes, é uma opulenta homenagem ao mestre Manoel de Oliveira, a que nem falta a palavra cinzelada de Agustina Bessa-Luís. Foi a estreia do cinema português no Festival de Berlim que agora começa.

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O céu de Berlim pode exibir o seu habitual cinzento plúmbeo de Inverno frio e chuvinha diminuta, mas no ecrã de uma das salas do complexo Cinemaxx mestre Acácio de Almeida faz maravilhas com as pedras milenares, as cores do guarda-roupa e o verde das paisagens. Horas antes da abertura oficial da 69.ª Berlinale – honras que caberão, esta noite, a The Kindness of Strangers, produção pan-europeia da dinamarquesa Lone Scherfig –, as primeiras projecções para a imprensa e para a indústria geraram filas à porta dos multi-salas da Potsdamer Platz. E entre elas compareceu, luminoso, um filme português.

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O céu de Berlim pode exibir o seu habitual cinzento plúmbeo de Inverno frio e chuvinha diminuta, mas no ecrã de uma das salas do complexo Cinemaxx mestre Acácio de Almeida faz maravilhas com as pedras milenares, as cores do guarda-roupa e o verde das paisagens. Horas antes da abertura oficial da 69.ª Berlinale – honras que caberão, esta noite, a The Kindness of Strangers, produção pan-europeia da dinamarquesa Lone Scherfig –, as primeiras projecções para a imprensa e para a indústria geraram filas à porta dos multi-salas da Potsdamer Platz. E entre elas compareceu, luminoso, um filme português.

A Portuguesa, de Rita Azevedo Gomes (Forum), começou esta quinta-feira em Berlim o seu périplo europeu, depois da estreia em Novembro no festival argentino de Mar del Plata. Contrastando com o Inverno grisalho lá fora, a realizadora de A Vingança de uma Mulher e Correspondências constrói, com um passe de magia, uma colorida fábula medieval sobre uma dama lusa casada com um conde guerreiro, o senhor Von Ketten (ou “senhor dos grilhões”) que passa mais tempo fora de casa a guerrear, inspirada na escrita de Robert Musil, mas – sobretudo – no cinema de Manoel de Oliveira.

Não é – nunca foi – segredo para ninguém a dívida que Rita Azevedo Gomes sempre teve para com o mestre nortenho, de quem se assumiu sempre discípula devota e que nunca escamoteou na sua escassa filmografia. Mas A Portuguesa deixa, de algum modo, a sensação de estar aqui o equivalente de Vale Abraão na obra da cineasta – um retrato de mulher fogosa e desafiadora das normas, que enfeitiça e horroriza aqueles que a rodeiam e que admite ser ateia e blasfema. Já dizia a célebre frase, “as meninas boas vão para o céu, as más para todo o lado”, e a pele de alabastro e o cabelo cor de fogo de Clara Riedenstein, presença aparentemente de porcelana, escondem uma determinação implacável – ela não é uma menina boa.

A Portuguesa podia ser uma bizarra “comédia do recasamento”, falando da dúzia de anos durante a qual o senhor Von Ketten (Marcello Urgeghe) faz a guerra ao Bispo de Trento e só vê a sua portuguesa de longe a longe. O filme, aliás, acaba num toque de comédia screwball que parece confirmar essa leitura. Mas, se o é, esconde-o bem: não é preciso muito tempo para perceber como tudo no filme de Rita Azevedo Gomes, mais do que filmado, é composto, organizado, enquadrado com o requinte de um pintor que organiza uma cena e sabe perfeitamente o que quer de cada actor, com ou sem diálogo, vedeta ou figurante. Entre o director de fotografia Acácio de Almeida e a realizadora parece existir uma qualquer telepatia, o filme é um regalo para os olhos, tal a perfeição desta câmara (quase invariavelmente) em longo plano fixo (muito Oliveira, lá está) mas a abrir sempre espaço para fugas à esquadria.

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A maior delas chama-se Ingrid Caven, a musa de Fassbinder que rodou com Visconti, Schroeter ou Claire Denis. É uma espécie de “coro grego” que surge a espaços durante a história cantando cantigas medievais (escolhidas e arranjadas por outro mestre, José Mário Branco), simultaneamente disruptor do feitiço do filme e gémea dissoluta da Portuguesa – como se fosse ela o retrato escondido de Dorian Gray que permite à dama lusa manter-se bela e intocada. Rita Azevedo Gomes filma-a como se fosse uma presença espectral de que mais ninguém no plano tem consciência, mas também como um “pauzinho na engrenagem” que quebra a perfeição rígida do formalismo teatralizado que corre por vezes o risco de afogar o filme.

Tudo isto é exacerbado pela palavra cinzelada, pensada, pesada e medida de Agustina Bessa-Luís, que assina a adaptação e os diálogos do conto original de Robert Musil, em que tudo e nada se diz, se esconde e se revela. É talvez o mais “oliveiresco” de todos os pormenores de um filme que deve tudo a Oliveira, mas que só poderia ter sido feito por uma mulher, e por uma discípula. E que como homenagem, há que dizer, não é nada mau.