Amor é revolução no palco do D. Maria II – e às vezes na vida real
Depois de uma trilogia dedicada ao período do Estado Novo e da Guerra Colonial, o Hotel Europa de André Amálio e Tereza Havlícková estreia em Lisboa Amores Pós-Coloniais, uma reflexão sobre como o amor é (também) um acto político.
Começam os seis, de pé, junto a uma bancada longa onde preparam uma refeição leve. E vão alternando entre si pequenas descrições dos seus amores – sejam eles a mulher com quem vivem, o pai que desapareceu e deixou atrás de si um vazio, os filhos que encheram muito mais os dias. Pouco depois, como que num gesto de provocação e de negação do que se irá passar, André Amálio avança e anuncia que ele e Tereza Havlícková – a dupla que forma a estrutura Hotel Europa – tomaram uma decisão: “Não queremos mais fazer teatro político. Queremos falar sobre o amor.”
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Começam os seis, de pé, junto a uma bancada longa onde preparam uma refeição leve. E vão alternando entre si pequenas descrições dos seus amores – sejam eles a mulher com quem vivem, o pai que desapareceu e deixou atrás de si um vazio, os filhos que encheram muito mais os dias. Pouco depois, como que num gesto de provocação e de negação do que se irá passar, André Amálio avança e anuncia que ele e Tereza Havlícková – a dupla que forma a estrutura Hotel Europa – tomaram uma decisão: “Não queremos mais fazer teatro político. Queremos falar sobre o amor.”
Finda a trilogia composta por Portugal Não É Um País Pequeno (2015), Passa-Porte e Libertação (ambas de 2017), construções em torno de arquivos escritos e audiovisuais do período do Estado Novo e da Guerra Colonial, a dupla começa neste novo espectáculo por afirmar a sua vontade de iniciar um novo ciclo. Mas, como rapidamente se percebe pelo título, Amores Pós-Coloniais, esta temática não se eclipsou subitamente da obra que apresentam no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, de 7 a 24 de Fevereiro (e que a 10 de Maio passará, via FITEI, no Teatro Municipal Campo Alegre, no Porto).
“A nossa ideia era mesmo lançar essa falsa premissa”, confessa André Amálio. Até porque, na verdade, este novo ciclo tem por mote O Amor Enquanto Espaço Político. “Há sempre esta ideia do amor enquanto espaço íntimo e privado, em que a política, as sociedades ou o mundo acabam por ficar à porta.” A proposta, em Amores Pós-Coloniais, é exactamente “desmontar essa ideia” e provar, com recurso às histórias de vida recolhidas pelo grupo, que “o amor é demasiado permeável àquilo que acontecia na sociedade colonial dos anos 50 e 60, mas também na sociedade de hoje, que ainda se debate com estas questões e está à procura de encontrar o seu caminho para uma descolonização”.
Acompanhados pelos músicos Pedro Salvador e Romi Anauel, e pelos actores Júlio Mesquita e Laurinda Chiungue (todos intérpretes por igual), André e Tereza usam em cena (como já antes o fizeram) as gravações de algumas das entrevistas que realizaram, mas passando-as para as suas vozes, sublinhando que mesmo que estas histórias pertençam a indivíduos concretos, com nomes e percursos só seus, são também histórias colectivas que, com maiores ou menores variações, se repetem pelo país fora. No caso, a investigação teve lugar na Grande Lisboa, em Coimbra e em Pontével, aldeia no concelho do Cartaxo onde foi recolhida a maioria dos relatos relativos ao período da Guerra Colonial. “Encontrámos aí uma grande necessidade de falar e muitas histórias diferentes que iam ao encontro daquilo que queríamos”, diz André Amálio. “Mas Pontével acabou por ser um paradigma do que é Portugal em muitas aldeias ou vilas. Se fôssemos a outros sítios com a mesma dimensão encontraríamos muitas destas histórias.”
Aquilo que ouvimos em palco dá conta dos amores dos soldados portugueses vividos durante a Guerra Colonial, mas também das relações que mulheres portuguesas tiveram com figuras dos movimentos de libertação de países africanos como Amílcar Cabral e Agostinho Neto. Ouvimos ainda a experiência do primeiro casamento inter-racial em Pontével, assim como um casal dos nossos dias que trabalha a descolonização no contexto da sua relação – “ele tem consciência do seu privilégio branco, ela tem consciência de que o outro subalternizado é ela”, resume André Amálio. “Estarem conscientes dos papéis que a sociedade deu a cada um e trabalharem isso foi para nós muito rico, para percebermos como é que diferentes casais de hoje lidam com estas questões." Questões que, no fundo, tentam responder à pergunta que se ouve em palco: haverá espaço para o amor pós-colonial?
E por muito que haja outros amores, menos atravessados por questões históricas, sociais e raciais, outros amores em que também as experiências dos intérpretes valem e que não têm de ser necessariamente felizes, outros amores em que a violência e as lutas de poder também acontecem, são sobretudo esses amores que têm de resistir não só ao dia-a-dia mas igualmente ao mundo que os rodeia que se provam mais tocantes e exemplares. Da mesma maneira que são esses casos que levam a que se possa levantar o punho e gritar “o amor é uma revolução”.
Essa ideia, aliás, encaminha André e Tereza para a citação da escritora norte-americana bell hooks em que esta defende a criação de uma cultura do amor para produzir a mudança. Esse filtro, essa capacidade de “olhar para o outro com amor”, é aquilo que Amores Pós-Coloniais propõe. Para que cada vez mais dogmas bafientos sejam desmontados e enterrados. Para que os livros de História possam ser reescritos sem o romantismo do colonialismo português e sem deixar de ignorar esse elefante que, no caso do Hotel Europa, ocupa quase toda a sala.