Nuno Queimado (às vezes) é Hamilton, o imigrante “que deixa o trabalho feito”
Há um português no elenco de Hamilton, um dos musicais mais aclamados do momento. Nuno Queimado trocou Lisboa por Londres e uma bata pelo palco. Até Dezembro vai continuar a interpretar, sempre que necessário, quatro personagens do musical, entre as quais Hamilton.
A qualquer momento, Nuno Queimado pode receber no seu camarim, em West End, Londres, uma chamada mais ou menos assim: “O Jason torceu o pé, tens de fazer de Lafayette. Agora.” E, poucos minutos depois, o actor português tem de estar em palco a substituir o colega e a contar (ou cantar) a história de Lafayette a 1600 pessoas, "de uma forma que valha o preço dos bilhetes, que são caríssimos”. Em qualquer outro dia, pode ser chamado para fazer o papel principal: aí, o português veste-se de imigrante caribenho e é Alexander Hamilton. Aos 31 anos, Nuno Queimado pertence ao elenco de Hamilton, um dos musicais mais aclamados e premiados do momento.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
A qualquer momento, Nuno Queimado pode receber no seu camarim, em West End, Londres, uma chamada mais ou menos assim: “O Jason torceu o pé, tens de fazer de Lafayette. Agora.” E, poucos minutos depois, o actor português tem de estar em palco a substituir o colega e a contar (ou cantar) a história de Lafayette a 1600 pessoas, "de uma forma que valha o preço dos bilhetes, que são caríssimos”. Em qualquer outro dia, pode ser chamado para fazer o papel principal: aí, o português veste-se de imigrante caribenho e é Alexander Hamilton. Aos 31 anos, Nuno Queimado pertence ao elenco de Hamilton, um dos musicais mais aclamados e premiados do momento.
Mas nem sempre esteve nos palcos. Há dez anos, vestia uma bata branca e atendia pacientes em Lisboa, onde nasceu. Era o “Dr. Nuno”, acabado de se formar em Psicologia, com uma carreira pela frente. Até que teve “uma epifania”: afinal, queria mesmo era fazer musicais. E porque “a convicção abre muitas portas” — até as dos teatros londrinos —, o psicólogo livrou-se da bata e do título, para vestir todas as peles que tivesse que representar.
O sacrifício e a “muita sorte” que diz ter tido fizeram com que se estreasse no Hamilton em Dezembro de 2018, já com um currículo onde constavam musicais de renome como Jesus Christ Superstar, The Little Match Girl ou God’s Garden, o primeiro trabalho que fez. Percurso pouco previsível para alguém que tinha 21 anos quando começou a encarar o teatro com alguma seriedade e a pedir os primeiros conselhos sobre a área a Henrique Feist. Porque, ao mesmo tempo, em Inglaterra, actores de 16 anos entravam para o ensino superior de Teatro Musical, com uma bagagem técnica muito superior à do jovem português, que apenas tinha experimentado teatro amador — e era com eles que viria a competir por um lugar numa escola.
Começou, aos 23, a rotina de audições: “Voava durante uma semana para Inglaterra, fazia uma audição e voltava, porque nunca passei”, conta o actor. “Mas a convicção abre portas e eu lá estava de bom grado”, continua. Decidiu, então, mudar-se para Londres, começar a vida do zero. Trabalhou em restaurantes e, finalmente, conseguiu entrar “numa escola muito pequena, que já nem existe”. “Estava com a motivação toda, chegava cedo, saía tarde, treinava mais quando não tinha que ir para o restaurante trabalhar”, comenta Nuno. Da escola, saiu para os palcos. Fez vários espectáculos em West End, “alguns muito prestigiosos, outros, óptimas lições” — Hamilton é, no entanto, o que “mais responsabilidade” lhe passa para as mãos.
O actor português é “um híbrido entre um standby e um swing”. O que significa que tem quatro personagens atribuídas e tem de estar no teatro em todos os espectáculos, pronto a entrar em palco sempre que é necessário substituir alguém — seja com aviso de dias ou minutos. E pode substituir dois personagens do ensemble, papéis "mais pequenos", ou dois principais: o Marquês de Lafayette e Alexander Hamilton. “Tenho de aprender os quatro papéis, saber exactamente o que eles vestem, cantam, onde estão, que movimentos fazem e estar constantemente a estudar para não me esquecer”, explica o actor. É a tal "responsabilidade", "de saber que confiaram e quiseram contratar o rapaz imigrante para, em algumas noites, fazer de Alexander Hamilton" — que não o deixa “nervoso ou ansioso”, mas, por outro lado, “comovido e grato”.
Ainda assim, a obrigatoriedade de se adaptar a diferentes personagens ao toque de um telefone não é o único desafio que o musical lhe impõe. O principal é fazer rap numa língua que não é a sua, mais ainda sem sotaque. Porque, para quem não sabe, o musical conta a história de Alexander Hamilton (que remonta ao século XVIII e XIX), versão rap: uma “escolha inteligentíssima, que faz todo o sentido artisticamente”, na opinião do actor. A mensagem? “Isto são os Estados Unidos. Pessoas de todas as origens que formaram um país. Um elenco de todas as formas e feitios, a representar personalidades históricas e a citar passagens da Constituição americana em rap.”
E o próprio Nuno representa esse multiculturalismo: não é por acaso que a personagem com a qual mais se identifica é Hamilton, “um imigrante ambicioso” que se mudou das Caraíbas para os Estados Unidos e acabou por se tornar uma personagem histórica. “Quando eu subo ao palco para fazer um musical que celebra um imigrante e digo ‘Immigrants, we get the job done!’ ("Imigrantes, nós deixamos o trabalho feito!", em tradução livre para português) e tenho uma plateia de 1600 pessoas a aplaudir e a gritar — em plena era de “Brexit” —, sendo eu português e tendo vindo para cá sem expectativas de sucesso... É claro que me identifico com ele e é um momento muito comovente.”
De facto, Nuno foi para Inglaterra “assumindo que a rejeição era a base”. Apesar de ter vingado, passou por ela várias vezes. Porque a rejeição é “presente, regular e pessoal”. “Somos rejeitados porque não somos bonitos o suficiente; ou somos demasiado bonitos; ou temos o cabelo muito encaracolado; ou somos muito magros. São coisas difíceis de não levar a peito, porque são muito pessoais”, lamenta. E relembra audições abertas, onde levava um número colado ao peito, “mesmo à filme”, esperava três horas para “cantar 16 compassos de uma música, que demora mais ou menos 30 segundos, e era interrompido por alguém que dizia apenas ‘Obrigado’”.
Até Dezembro, pelo menos, fica pelo Hamilton — o sucesso do musical pode ditar o seu prolongamento. Nuno divide o tempo entre os ensaios e espectáculos, que ocupam a maior parte do dia, e as aulas de Teatro Musical que lecciona a alunos do ensino superior. Sobra-lhe pouco para estar com os amigos ou para programas de voluntariado, como o que vai começar dentro de pouco tempo. “Vou ser mentor, um dia por semana, durante um ano, de uma criança que vem de uma família desestruturada”, aponta.
Voltar para Portugal só aconteceria por “motivos de família e orgulho nacional”. Em termos profissionais, “não era uma boa jogada”. “Infelizmente, o público português não tem o hábito de ir ao teatro, dá pouco valor aos artistas e o que se paga é uma vergonha”, lamenta Nuno. E realça o talento dos portugueses para representar: “Nós vamos para fora e somos elogiados pela nossa qualidade. Temos uma tradição óptima em teatro, que está a morrer.” Por isso, vai ficar por Inglaterra. Afinal, lá, é um imigrante que deixa o trabalho feito.