Quando não há mais nada, ficam os mitos
Na imprensa conservadora, os dias gloriosos da resistência britânica às investidas de Hitler começam a ser a resposta que resta para a ansiedade que a aproximação da data da saída da UE sem acordo está a causar.
1. Há dias, um político defensor irredutível do "Brexit" respondia a uma questão colocada por um canal de televisão, sobre as consequências dramáticas de uma saída sem acordo, que os ingleses tinham aguentado a II Guerra sem se ir abaixo. Não é o único. Na imprensa conservadora, os dias gloriosos da heróica resistência britânica às investidas de Hitler começam a ser a resposta que resta para o crescente sentimento de ansiedade que a aproximação da data da saída sem acordo está a causar. O FT dá conta do regresso dos “mitos sobre a resiliência dos britânicos”, citando, por exemplo, um recente texto de Charles Moore na Spectator. Diz o jornalista: “Deste lado da costa, temos a tradição secular do contrabando e estamos preparados para ir nos nossos pequenos barcos até Dunquerque ou outro sítio qualquer e trazer de lá reluzentes alfaces, feijão-verde francês ou laranjas e limões franceses”. Esta displicência só não é ridícula porque faz parte do jeito de ser displicente dos britânicos que toda a gente conhece. Dunquerque exalta a memória dos anos 40, quando as Ilhas resistiam sozinhas à barbárie hitleriana. Os bombardeamentos contínuos de Londres e de outras cidades inglesas durante o Blitz mostram um povo que prefere cair de pé a ceder perante a pior das provações. Centenas de filmes foram e são dedicados à sua “finnest hour”. Mas era também o orgulho de um povo habituado a liderar um Império onde o Sol nunca se punha, uma grande potência marítima que “governava as vagas”, um país que escreveu a Magna Carta e a Revolução Industrial, que nunca aceitaria render-se a um líder bárbaro e demencial que alimentou o sonho louco e imperial de dominar a Europa. Os ingleses resistiram também porque Churchill era Churchill – uma figura ímpar que conseguiu traduzir em palavras e em actos esse espírito indomável, ao qual o país se rendeu e o mundo livre também. Homens e mulheres de todas as classes sociais fizeram o seu papel. Ainda hoje há uma velha anedota a gozar com a forma peculiar de falar da aristocracia britânica recorrendo à última frase dos pilotos da RAF que travaram a Batalha de Inglaterra antes de levantarem voo: “chocks away”.
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1. Há dias, um político defensor irredutível do "Brexit" respondia a uma questão colocada por um canal de televisão, sobre as consequências dramáticas de uma saída sem acordo, que os ingleses tinham aguentado a II Guerra sem se ir abaixo. Não é o único. Na imprensa conservadora, os dias gloriosos da heróica resistência britânica às investidas de Hitler começam a ser a resposta que resta para o crescente sentimento de ansiedade que a aproximação da data da saída sem acordo está a causar. O FT dá conta do regresso dos “mitos sobre a resiliência dos britânicos”, citando, por exemplo, um recente texto de Charles Moore na Spectator. Diz o jornalista: “Deste lado da costa, temos a tradição secular do contrabando e estamos preparados para ir nos nossos pequenos barcos até Dunquerque ou outro sítio qualquer e trazer de lá reluzentes alfaces, feijão-verde francês ou laranjas e limões franceses”. Esta displicência só não é ridícula porque faz parte do jeito de ser displicente dos britânicos que toda a gente conhece. Dunquerque exalta a memória dos anos 40, quando as Ilhas resistiam sozinhas à barbárie hitleriana. Os bombardeamentos contínuos de Londres e de outras cidades inglesas durante o Blitz mostram um povo que prefere cair de pé a ceder perante a pior das provações. Centenas de filmes foram e são dedicados à sua “finnest hour”. Mas era também o orgulho de um povo habituado a liderar um Império onde o Sol nunca se punha, uma grande potência marítima que “governava as vagas”, um país que escreveu a Magna Carta e a Revolução Industrial, que nunca aceitaria render-se a um líder bárbaro e demencial que alimentou o sonho louco e imperial de dominar a Europa. Os ingleses resistiram também porque Churchill era Churchill – uma figura ímpar que conseguiu traduzir em palavras e em actos esse espírito indomável, ao qual o país se rendeu e o mundo livre também. Homens e mulheres de todas as classes sociais fizeram o seu papel. Ainda hoje há uma velha anedota a gozar com a forma peculiar de falar da aristocracia britânica recorrendo à última frase dos pilotos da RAF que travaram a Batalha de Inglaterra antes de levantarem voo: “chocks away”.
2. Nada justifica, no entanto, este espírito destituído do mínimo de bom senso ou do mais elementar realismo. O país não é alvo de qualquer agressão exterior. Aderiu à Comunidade Europeia – o pedido foi entregue em 1964, mas teve de esperar que De Gaulle saísse do Eliseu para receber o sim de Bruxelas – porque se tornou por demais evidente que os seis países fundadores, todos eles igualmente devastados pela guerra, tinham conseguido recuperar economicamente muito mais depressa. Londres tornou-se uma cidade emersa em “fog”, a pobreza tornou-se visível, a decadência também. Foi o “Inverno do Descontentamento”, com as infindáveis greves dos mineiros e de muitos outros trabalhadores, organizados em poderosas “trade unions”. Os conservadores erguiam nessa altura a bandeira europeia e os trabalhistas digladiavam-se furiosamente por causa da Europa. Foi preciso a conjugação do impacte positivo da adesão e da chegada de Margaret Thatcher a Downing Street para que o caminho se fosse lentamente invertendo. Quando John Major a substituiu, em 1991, a economia já tinha dado a volta, os homeless tinham desaparecido das ruas Londres e o Governo de sua Majestade tinha recuperado da tensão extrema que a Dama de Ferro tinha criado com Bruxelas na sequência da unificação alemã e das negociações de Maastricht, antecipando uma Europa que não seria apenas o Mercado Único mas uma união de destino.
Blair reinou sobre a Cool Britannia. Que já nada tinha a invejar aos seus grandes parceiros europeus, que ganhara uma influência crescente no centro das decisões europeias, que tinha um discurso forte e comprometido com a Europa, não apenas como uma realidade política em si própria, mas como uma potência de primeira linha na nova ordem mundial. Quando, em 2005, Blair foi ao Parlamento Europeu apresentar o programa da presidência britânica da União, foi ovacionado de pé pela maioria das bancadas. Dois anos depois do início da guerra no Iraque. A “terceira via” contagiava a Europa, de Lisboa a Berlim, passando até por Paris, onde os socialistas mais moderados se interrogavam sobre as razões pelas quais a economia inglesa crescia com taxas que a francesa estava longe de conseguir alcançar. Sabemos hoje que esse período foi uma breve ilusão, quando o mundo ocidental acreditou que o seu modelo político e económico se iria expandir à escala global. O 11 de Setembro acabaria por mudar bruscamente o rumo da única superpotência, lançando ondas de choque sobre o mundo. A globalização mostrou o seu lado negro. O optimismo acabou. A profecia de Samuel Huntington sobre o “choque de civilizações” como a marca do século XXI parecia confirmar-se. A queda do Lehman Brothers desencadeou uma crise financeira à escala mundial que se transformou numa Grande Recessão. Ainda hoje curamos as feridas que deixou.
Na Europa e nos Estados Unidos, a História começou a andar ao contrário. Mudaram os problemas das nossas sociedades e as democracias estão a ser testadas em quase toda a parte. Depois da esperança Obama, vivemos o pesadelo Trump. E, mais uma vez, os EUA ainda têm o poder de provocar ondas de choque no mundo inteiro quando mudam radicalmente a sua relação com o mundo. A coincidência entre a eleição de Trump e o “Brexit” foi uma dupla machadada para a Europa. E a Europa ainda não sabe como lidar com ambos.
É aqui que estamos. Com o Reino Unido mergulhado numa crise existencial sem precedentes desde a II Guerra. Com o Continente sem saber como reagir. Com o risco de um descalabro que, como também lembra o FT, os britânicos não vão receber com o mesmo espírito com que receberam as bombas de Hitler. Quanto mais não seja, porque vivem em paz há 70 anos e porque, como todos os povos europeus, se habituaram à prosperidade. Cairiam de pé, ninguém duvida. Mas nunca perdoariam a uma classe política desnorteada e mesquinha, fechada numa “casa de loucos”, que os conduziu para uma situação insustentável, incluindo o risco de fragmentação do próprio Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte, o longo nome que figura nos passaportes britânicos. Perguntariam então: para quê?
3. Na América, a economia resiste à vaga de incertezas que o irredentismo da Casa Branca alimenta. Em Janeiro, criou 304 mil novos postos de trabalho, ultrapassando as melhores previsões. Na Europa, pelo contrário, as previsões entraram na fase do pessimismo, contrariando os fundamentos das economias europeias, que são, no geral, sólidos – contas equilibradas, um longo período de retoma, taxas de juro baixíssimas, inflação controlada. Só se podem explicar por razões políticas, que vão do "Brexit" às guerras comerciais de Trump, passando pela própria indefinição que paira sobre o futuro da Europa.
Os próprios britânicos ainda não sentiram demasiado os efeitos antecipados da previsão de saída. Um estudo recente do Centre for European Reform demonstrava que, sem o resultado do referendo, o PIB britânico seria 2,3% mais elevado. É uma abstracção difícil de compreender pelo cidadão comum. A vida está caríssima, é sobretudo o que os britânicos mais sentem. Por mais estranho que pareça, há um número demasiado elevado de homeless nas ruas de Oxford. A contracção do consumo e do investimento está a ser compensada, em parte, pela armazenagem de bens essências pelas famílias e de matérias-primas pelas empresas. Os empresários entraram já em modo de pânico e o que dizem deveria fazer gelar o sangue a qualquer político responsável. Não é o caso. É aí que entra o Blitz. O problema é que o heroísmo precisa de uma justificação muito mais convincente do que sair de uma comunidade de países que vivem em paz, que enfrentam os mesmos problemas e enfrentam os mesmos desafios. Quando a “special relationship” já não é o que era. Quando a Commonwealth é pouco mais do que uma miragem. Quando a Europa precisava, talvez mais do que nunca, dos britânicos para enfrentar um mundo que lhe é cada vez mais hostil.