A Venezuela à beira do vulcão...
Estamos a assistir a momentos únicos e extremamente perigosos na vida da Venezuela.
A Venezuela é neste momento um laboratório de direito constitucional, ao mesmo tempo trágico e fascinante.
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A Venezuela é neste momento um laboratório de direito constitucional, ao mesmo tempo trágico e fascinante.
Juan Guaidó, presidente interino da Assembleia Nacional da Venezuela, ao declarar-se no passado dia 23 de Janeiro Presidente da Venezuela, quando existe um outro presidente eleito, Nicolás Maduro, criou uma situação de dualidade de poderes, o que não sendo uma realidade inédita no panorama político-constitucional das nações corresponde, em termos astronómicos, a um eclipse total do sol.
Lenine, em 1917, afirmava num texto sobre a situação que se vivia então na Rússia: “A questão fundamental de toda a revolução é a questão do poder de Estado. Sem esclarecer esta questão nem sequer se pode falar em participar de modo consciente na revolução, para já não falar em dirigi-la. Uma particularidade extremamente notável da nossa revolução consiste em que ela gerou uma dualidade de poderes. (...) Em que consiste a dualidade de poderes? Em que ao lado do Governo Provisório, o governo da burguesia, se formou outro governo, ainda fraco, embrionário, mas indubitavelmente existente de facto e em desenvolvimento: os Sovietes de deputados operários e soldados.” E Lenine não tinha dúvidas que o novo governo, o governo dos sovietes, devia derrubar o governo burguês e tomar o poder, como efectivamente tomou.
Na Venezuela, por volta de 2006, Michael Lebowitz, um economista conselheiro de Hugo Chávez, esclarecia que na revolução bolivariana existiam “dois Estados: em primeiro lugar, aquele de que os trabalhadores começam a tomar o controlo (quer dizer, o antigo Estado) e a partir do qual começam a promulgar medidas constrangedoras relativamente ao Capital; em seguida, o novo Estado nascente, de que os comités de trabalhadores e os conselhos municipais comunais são as células de base. O ponto de partida, claro, é o Estado antigo e a passagem ao socialismo, entendido como um sistema orgânico, é um processo de transição para o novo. Mas isto quer dizer que os dois devem coexistir e interagir ao longo de todo este processo”. Desde essa altura até hoje a Venezuela não só não viu nascer um novo Estado, como viu degradar-se o Estado existente com um crescimento imparável da corrupção, da inflação e da repressão.
A revolução bolivariana, se conseguiu nos primeiros anos reduzir extraordinariamente a pobreza e as desigualdades económicas, apoiada na valorização internacional do preço do petróleo, vive, desde há cinco anos, uma violenta situação de recessão económica com níveis de inflação dificilmente imagináveis. Simultaneamente, a Venezuela é o palco de uma realidade política absurda, com a utilização do poder do Estado para a manutenção de uma nova oligarquia de que fazem parte os militares envolvidos em negócios mirabolantes. As restrições à liberdade de expressão e de imprensa, a repressão violenta das oposições, a penúria de alimentos e medicamentos, o êxodo da população para os países vizinhos e o estado de quase guerra civil que se vive periodicamente na Venezuela pareciam tornar insustentável a manutenção do poder chavista. E, no entanto, as oposições, apesar das mais diversas tentativas insurreccionais, nunca conseguiram alterar as relações de força existentes, ficando sempre a meio caminho. Mas agora, Guaidó, com o evidente apoio prévio dos Estados Unidos da América, ao assumir-se como presidente interino deu início a um conflito constitucional e legal a céu aberto que se desenvolve, cada dia que passa, numa espiral de radicalização: o procurador-geral pediu ao Supremo Tribunal que Guaidó seja impedido de sair do país e lhe sejam congelados os bens; os EUA, numa manifestação de internacionalismo, e também na linha da doutrina Monroe, congelaram os dinheiros do petróleo venezuelano no estrangeiro e pretendem que os mesmos sejam entregues a Guaidó; e ontem, pelo lado de Maduro, foi convocada para este sábado uma manifestação de apoio aos 20 anos da revolução.
Uma coisa é certa: esta situação de dualidade de poderes – duas legalidades – não pode manter-se por muito tempo, pelo que estamos a assistir a momentos, politicamente e legalmente, únicos e extremamente perigosos na vida da Venezuela.