Como é que o cancro se transmite no diabo-da-tasmânia?
Cientistas da Europa, do Canadá e da Austrália quiseram perceber como um tipo de cancro é contagioso no maior marsupial carnívoro vivo. Acabaram por descobrir o mecanismo molecular envolvido neste processo.
No reino animal, são poucos os tipos de cancro resultantes de um contágio por células cancerosas: há nos cães, em várias espécies de bivalves marinhos e no diabo-da-tasmânia (Sarcophilus harrisii). Mas como é que o cancro se torna transmissível? Cientistas da Europa, do Canadá e da Austrália respondem a uma parte desta questão num artigo científico publicado na revista científica Cancer Cell, onde revelam o mecanismo molecular que torna possível a transmissibilidade do cancro no diabo-da-tasmânia.
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No reino animal, são poucos os tipos de cancro resultantes de um contágio por células cancerosas: há nos cães, em várias espécies de bivalves marinhos e no diabo-da-tasmânia (Sarcophilus harrisii). Mas como é que o cancro se torna transmissível? Cientistas da Europa, do Canadá e da Austrália respondem a uma parte desta questão num artigo científico publicado na revista científica Cancer Cell, onde revelam o mecanismo molecular que torna possível a transmissibilidade do cancro no diabo-da-tasmânia.
“Normalmente, as células cancerosas não se transmitem entre os indivíduos. Não se conhece casos de transmissão de cancro em humanos, a não ser de raros casos durante uma cirurgia, transplantes e transmissão materno-fetal”, começa por assinalar o artigo científico. Mas com o diabo-da-tasmânia o caso é bem diferente: nas últimas duas décadas, um tumor facial já terá dizimado 90% da população selvagem do maior marsupial carnívoro vivo.
Transmitido através de dentadas durante lutas ou no acasalamento, o tumor afecta o focinho do diabo-da-tasmânia, impede-o de comer (e até de respirar) e leva-o à morte. “De forma peculiar, as células cancerosas são transmitidas de um diabo-da-tasmânia para outro através de dentadas. Todas as amostras recolhidas são quase geneticamente idênticas e derivam presumivelmente de uma única célula”, refere-se num comunicado sobre o trabalho.
Em 2010, cientistas do Laboratório de Cold Spring Harbor (nos Estados Unidos) identificaram o conjunto de genes que entravam em acção nas células e as levavam ao cancro. Depois, compararam a assinatura genética do cancro com a das células normais e perceberam que ambas as assinaturas coincidem com a das células de Schwann, que cobrem os prolongamentos dos neurónios, para os isolar electricamente. Portanto, seria assim que este cancro contagioso começaria. Mas ainda havia muito a desvendar.
Agora, equipa de cientistas coordenada por Richard Moriggl (da Universidade de Medicina Veterinária de Viena, na Áustria) e Andreas Bergthaler (do Centro de Investigação para a Medicina Molecular da Academia Austríaca de Ciências) revela o mecanismo molecular crucial na transmissão deste cancro.
Primeiro, os cientistas identificaram uma peça-chave na transmissão: receptores de moléculas na superfície das células cancerosas chamados “receptores ERBB”. Perante as dentadas, estes receptores aumentavam muito a sua actividade e que desencadeavam uma reacção em cadeia nas células que activavam as proteínas STAT3. E isso provocava uma “reconstrução” das próprias células. “Não só o número de moléculas que alertam o sistema imunitário [da presença de cancro] é reduzido, como ocorre de forma acelerada a proliferação das células e há a produção de factores envolvidos na formação de metástases”, explica-se no comunicado.
Pela primeira vez, pôde assim concluir-se que a activação excessiva dos receptores ERBB e as STAT3 têm um papel crucial na transmissão do cancro no diabo-da-tasmânia.
Além disso, através do tratamento deste tumor em ratinhos também se mostrou que a inibição dos receptores ERBB com um fármaco eliminou selectivamente as células cancerosas. “Isto pode ter um papel importante no tratamento da doença antes de o diabo-da-tasmânia ficar extinto”, considera Lindsay Kosack, também Centro de Investigação para a Medicina Molecular da Academia Austríaca de Ciências e autora do trabalho.
Preservação da espécie
Sobre se esta descoberta pode ajudar a preservar o diabo-da-tasmânia, Andreas Bergthaler explica ao PÚBLICO: “Ainda é muito cedo para o saber e precisamos de fazer mais investigação básica.” Contudo, o cientista assinala que, ao identificar-se este fármaco, ele pode agora ser testado no diabo-da-tasmânia e é um passo importante: “Com base nos nossos resultados, esperamos abrandar o desenvolvimento do tumor e, ao mesmo tempo, revigorar o sistema imunitário do diabo-da-tasmânia.”
Andreas Bergthaler considera mesmo que – juntamente com o desenvolvimento de outras estratégias como vacinas – estes resultados possam ajudar a lutar contra este cancro contagioso e prevenir a extinção desta espécie.
Podem ainda estes resultados contribuir para o estudo do cancro nos humanos? “99,1% da STAT3 do diabo-da-tasmânia é idêntica à [versão] humana da proteína. E muitos dos genes que são activados pela STAT3 nos animais também são activados no cancro humano”, refere Andreas Bergthaler. “Uma melhor compreensão molecular desta doença rara pode dar-nos conhecimentos sobre os mecanismos biológicos fundamentais do desenvolvimento do cancro.”