O argumento de classe classista
Toda a minha vida ouvi esquerdistas de cátedra ou de casta explicarem aos filhos de proletários como eu de que forma devíamos ou não devíamos ser de esquerda. Agora ouço-os explicarem aos negros como é que eles devem ou não ser anti-racistas.
Anteontem, sobre racismo, sugeri que se perguntasse aos negros. E entretanto li ou reli uma série de textos e reacções em que de cátedra se explica que o problema que os negros acreditam ser racismo é afinal de classe; ou que só se combate o racismo quando acabarem as desigualdades de classe; ou que um negro pobre não é tratado de forma pior do que um branco pobre, e que um negro rico não terá por conseguinte problemas com o racismo; ou que a esquerda que não compra nenhum dos argumentos atrás expostos é “identitária” e que por causa dela é que os racistas sobem ao poder.
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Anteontem, sobre racismo, sugeri que se perguntasse aos negros. E entretanto li ou reli uma série de textos e reacções em que de cátedra se explica que o problema que os negros acreditam ser racismo é afinal de classe; ou que só se combate o racismo quando acabarem as desigualdades de classe; ou que um negro pobre não é tratado de forma pior do que um branco pobre, e que um negro rico não terá por conseguinte problemas com o racismo; ou que a esquerda que não compra nenhum dos argumentos atrás expostos é “identitária” e que por causa dela é que os racistas sobem ao poder.
Ora, se o argumento é agora de classe, acho que já tenho uma coisinha a dizer. Duas, aliás. Que o argumento está profundamente errado. E, pior, que o argumento é classista.
O negro pobre não é tratado pior do que o branco pobre? Pelo contrário, o objectivo do racismo, historicamente, é fazer com que assim seja — e os resquícios desse racismo estão entre nós. A nostalgia política de hoje é também uma nostalgia por esse tempo em que, como dizia Martin Luther King, um “passarinho psicológico” chamado racismo explicava ao homem branco que, por muito complicada que fosse a sua vida, ele era hierarquicamente superior, porque era homem, e era branco. Boa parte das admoestações para que não defendamos tanto os refugiados ou os migrantes “porque a classe trabalhadora branca não gosta e pode mudar de voto” é o sucedâneo desse passarinho psicológico em forma de análise política.
E o negro que não é pobre? Não tem de se preocupar com racismo? Se sim, porque foram detidos sem mandato durante horas dois irmãos angolanos negros, meus amigos, — um doutorado na Columbia e outro doutorando no ISCTE —, pelo simples facto de se encontrarem no bairro abastado da Lapa e ter havido um assalto nas imediações (saiu nos jornais à época)? Se fossem angolanos brancos, como outro amigo que morava também por ali, teriam passado por isso?
Mas — diz a outra versão deste argumento — resolver os problemas de desigualdade “clássicos” não será a melhor maneira de as pessoas deixarem de ser racistas e em geral preconceituosas? Oxalá assim fosse. Mas não é tão simples. Temos de lutar contra a desigualdade, a precariedade e a pobreza por si mesmas e não de forma instrumental — e contra o racismo e preconceito por si mesmos também.
No Brasil a pobreza diminuiu muito nos anos de Lula — e o racismo, diminuiu ou aumentou depois disso? Nos EUA não houve talvez década social e economicamente mais igualitária do que a de 1950 — e que acham, foi porventura uma década pouco racista? Bem sei que a cartilha não explica estas contradições, mas a certa altura é preciso decidir se se quer acreditar na cartilha ou testá-la em confronto com a realidade. A permanente negação do papel da cultura, da linguagem e da educação, ou sua menorização, em favor de uma suposta “infraestrutura” económica que as pré-determinaria é aquele tipo de marxismo chapa-cinco que já só serve para se explicar a si mesmo.
E aí chegamos ao argumento final: ai que a esquerda ficou “identitária” e se esqueceu do Marx! Ai que desgraça! O círculo está agora completo: não só o argumento de classe explica muito pouco ou quase nada, como revela a sua natureza classista. Sim, classista: a favor de uma hierarquia, de uma tradição, de uma aristocracia ideológica.
Toda a minha vida ouvi esquerdistas de cátedra ou de casta explicarem aos filhos de proletários como eu de que forma devíamos ou não devíamos ser de esquerda. Agora ouço-os explicarem aos negros como é que eles devem ou não ser anti-racistas. Há uns anos ouvi-os explicar aos homossexuais que deveriam adiar as suas lutas “particularistas” em favor das lutas das “massas”. Agora pedem aos negros que não cedam ao “politicamente correto” e que esperem pelo fim do capitalismo que acabará magicamente com o preconceito — ou que neguem a realidade que sentem na pele, apenas porque um barbudo do século XIX terá explicado que aquilo que eles sentem é uma coisa diferente.
Tal como o cardeal explica que o que está na Bíblia não significa o que lá está escrito, ou o psicanalista freudiano que tudo explica pela relação com a mãe, também o pontificador do marxismo julga deter o monopólio da interpretação correta do marxismo e vive na obsessão de tudo reduzir a uma explicação de classe. O que não cabe, caricatura-se como “esquerda identitária” ou “politicamente correta”.
Uma proposta singela: e se em vez disso lhe chamássemos antes “esquerda que vê uma desigualdade injusta baseada em características de nascimento que não escolhemos e não podemos controlar, e por isso a quer combater, erradicar ou corrigir”? Concordo, é muito longo. Para encurtar, podíamos tentar só “esquerda”.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico