Peter Jackson vai reconstruir os Beatles, 50 anos depois

No dia em que se assinala meio século sobre o último concerto da banda, chega o anúncio de que o realizador de O Senhor dos Anéis vai ter acesso a 55 horas de película e 140 horas de áudio para criar uma nova versão do filme Let it Be.

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Aquele que seria o último concerto da banda aconteceu no topo de um edifício londrino em Saville Row DR

Gente a subir escadarias de prédios alheios para conseguir ver melhor o que se passava. Um cavalheiro de gabardine e cachimbo, com ares de senhor Hulot, versão fleuma britânica, a instalar-se no terraço de um edifício vizinho com boa visibilidade. Transeuntes de olhar especado nos céus, em busca da origem do som. Polícias a correrem para o local de onde, inesperadamente, começaram a soar guitarras eléctricas, teclado, baixo e bateria – e um baterista que, décadas mais tarde, confessaria ter ficado desiludido com o civismo dos agentes que, em vez de o arrancarem bruscamente da bateria para parar com o ruído, o que, de acordo com o músico, daria uma cena muito mais empolgante, se limitaram a pedir gentilmente que se baixasse o volume dos instrumentos.

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Gente a subir escadarias de prédios alheios para conseguir ver melhor o que se passava. Um cavalheiro de gabardine e cachimbo, com ares de senhor Hulot, versão fleuma britânica, a instalar-se no terraço de um edifício vizinho com boa visibilidade. Transeuntes de olhar especado nos céus, em busca da origem do som. Polícias a correrem para o local de onde, inesperadamente, começaram a soar guitarras eléctricas, teclado, baixo e bateria – e um baterista que, décadas mais tarde, confessaria ter ficado desiludido com o civismo dos agentes que, em vez de o arrancarem bruscamente da bateria para parar com o ruído, o que, de acordo com o músico, daria uma cena muito mais empolgante, se limitaram a pedir gentilmente que se baixasse o volume dos instrumentos.

Foi em Londres, há 50 anos, mais propriamente em Saville Row, no topo do edifício da Apple. Foi ali, no terraço da editora/loja dos Beatles que a banda deu, a 30 de Janeiro de 1969, aquele que seria o seu último concerto.

A histórica actuação foi filmada por Michael Edward Lindsay-Hogg e incluída no documentário de 1970 Let it Be, registo dos ensaios que precederam a gravação do álbum homónimo, o penúltimo a ser gravado pelos Beatles (Abbey Road foi a despedida), mas o último a ser editado – chegou às lojas em Maio de 1970, pouco depois do anúncio do fim da banda.

No dia em que se cumpre meio século sobre o concerto no terraço, parte da mitologia da banda, alvo de recriações por outros nomes –​ o mais célebre desde então terá sido o dos U2, em 1987, em Los Angeles, registado no vídeo de Where the streets have no name –, eis que chega o anúncio de um reencontro. O do público com o concerto, o do público com o filme em que foi incluído originalmente. Peter Jackson, o realizador neo-zelandês da saga Senhor dos Anéis, terá em mãos um espólio gigantesco: 55 horas de filme não utilizado no Let it Be original e 140 horas de gravações áudio. O objectivo? Criar um novo Let it Be, ou, como afirmou Peter Jackson em comunicado: “a experiência ‘mosca na parede’ definitiva com que os fãs dos Beatles sonham há muito – é como se uma máquina do tempo nos transportasse para 1969, e nos sentássemos no estúdio a ver aqueles quatro amigos a fazerem óptima música juntos”.

A referência de Jackson aos “quatro amigos a fazerem óptima música juntos” poderá levantar algumas dúvidas aos familiarizados com a história dos Beatles e de Let it Be em particular. A narrativa conhecida até hoje dá conta de como a sugestão de Paul McCartney de retirar os Beatles dos estúdios de Abbey Road, alojando-os nos estúdios para cinema e televisão de Twickenham, forma de conjugar sessões de gravação com as filmagens planeadas, redundou num crescendo da tensão latente vivida no seio da banda, que já marcara as gravações do White Album. Aquilo que McCartney pretendia que fosse um período de reencontro e redescoberta redundou num desastre, com os Beatles desconfortáveis no novo ambiente e com as discussões entre os seus membros a abrirem caminho para o fim que chegaria um ano depois – as gravações de Let It Be decorreram durante o mês de Janeiro de 1969. John Lennon descreveu as sessões como “um inferno”, George Harrison classificou-as como “o momento mais baixo de todos os tempos”.

Peter Jackson, porém, garante que aquelas descrições estão longe da verdade. “Fiquei aliviado por descobrir que o mito não corresponde à realidade. É certo que há momentos de tensão – mas nada da discórdia que se associa há muito a este projecto. Ver John, Paul, George e Ringo a trabalharem juntos, criando do zero canções que são agora clássicos, não é apenas fascinante – é divertido, inspirador e surpreendentemente intimista”.

O álbum Let It Be é casa de canções como o tema-título, Across the universe, The long and winding road e Get back. Quanto ao filme, que foi inicialmente pensado como um especial televisivo onde seriam acompanhados os ensaios da banda antes do seu concerto de regresso – os Beatles haviam anunciado o abandono dos palcos em 1966, despedindo-se no Candlestick Park, em São Francisco, Estados Unidos –, acabou por se transformar em longa-metragem cinematográfica. Nela incluía-se o famoso concerto.

Lennon, McCartney, George e Ringo, acompanhados pelo teclista Billy Preston, colaborador regular na última fase da banda, de cabelos ao vento e vestidos com casacos quentes para suportar o invernal frio inglês. Cinco canções para a história – Get back (dois takes), Don’t let me down (dois takes), I’ve got a feeling (dois takes), One after 909 e Dig a pony. Aguardemos para ver como Peter Jackson nos vai devolver Let It Be. Actualmente em fase de produção, e contando com a colaboração de Paul McCartney, Ringo Starr, Yoko Ono, viúva de John Lennon, e Olivia Harrison, viúva de George, o filme tem estreia marcada para 2020. A acompanhar o lançamento, será também disponibilizada uma nova edição do filme original.

Let it Be será o primeiro trabalho de Peter Jackson após o documentário They Shall Not Grow Old, em que se debruçou sobre imagens de arquivo da Primeira Guerra Mundial, dando-lhes nova vida através de um restauro exaustivo, possibilitado pela tecnologia hoje disponível.