Partilhar o palco com Joana Gama

Um recital e um concerto (quase) para piano que trouxeram ao Grande Auditório da Gulbenkian uma artista singular. Primeiro a solo e depois com músicos cúmplices. E com uma proposta de outra maneira de fazer e de escutar.

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Joana Gama Jorge Carmona

Desta vez o palco foi partilhado com Joana Gama no Grande Auditório da Gulbenkian. O público sentou-se em volta do piano, em cima do palco, e chegou cedo, expectante. Tratava-se da interpretação da pianista Joana Gama da obra de Federico Mompou, Música Callada. Um concerto do ciclo Música no Feminino proposto pela Gulbenkian nesta temporada.

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Desta vez o palco foi partilhado com Joana Gama no Grande Auditório da Gulbenkian. O público sentou-se em volta do piano, em cima do palco, e chegou cedo, expectante. Tratava-se da interpretação da pianista Joana Gama da obra de Federico Mompou, Música Callada. Um concerto do ciclo Música no Feminino proposto pela Gulbenkian nesta temporada.

O pianista e compositor catalão Mompou escreveu entre 1959 e 1967 quatro livros desta "música calada", um título inspirado nos versos do poeta místico espanhol do século XVI, São João da Cruz. Uma música calma e na maior parte dos casos lenta, que se desenrola em 28 miniaturas para piano solo.

Joana Gama fez sua esta série de pequenas peças, que vão surgindo como se fossem memórias de infância, tocando-as com uma sensibilidade invulgar. Um tom nostálgico percorre esta música calada, que parece contar pequenas histórias "cá de dentro", no estilo de Mompou, claramente devedor da música francesa simbolista, mas com um ímpeto modernista que cruza a máxima simplicidade ao mesmo tempo que procura a máxima expressão.

A pianista fez uma performance tocante, levando ao extremo a ideia de que "menos é mais", com uma articulação perfeita e um trabalho dinâmico cuidadoso, agarrando o público que rodeava o seu piano e que parecia trazer a máxima disponibilidade para a escuta de pouco mais de uma hora de música. Música plácida, calma, tranquila, lenta, simples, como os títulos das peças indicam. Mas também por vezes com tormentos e dúvidas arrancados a poucas notas, na hesitação permanente entre o modo menor e o modo maior, jogando com a escuta, até por vezes nos deixar suspensos sem saber como poderia resolver-se a questão.

O resto é simplesmente "estar ao piano" e "ser pianista": são essas talvez as maiores revelações deste concerto, que a artista Joana Gama propôs com a máxima coerência e resolveu com a maior elegância. Como se pode simplesmente tocar piano – tocar só - , e deixar-nos viajar pela solidão do outro, partilhar a solidão do compositor e do intérprete?

No concerto da noite (às 21h30) que se seguiu, foi tudo outra coisa - nada de calma e de placidez. Joana Gama e Luís Fernandes propunham uma composição nova, um concerto para piano, electrónica e orquestra encomendados pelo Westway Lab Festival. Mas não é bem um concerto para piano: são sete momentos tensos de cruzamento entre o piano, a orquestra e a electrónica, por vezes lançados por uma nota só ou um acorde pianístico, outras pela electrónica (que pega nos sons do piano e os transforma), a que a orquestra se junta nas orquestrações de José Alberto Gomes. Um lado ritualístico (e de novo o público no palco, mas agora não à volta, mas de frente para os intérpretes) marcou o início do concerto, com fumo lançado ao ar nos dois extremos do palco. Mas a música deixa a princípio um pouco a desejar, na forma como decide fazer a ligação entre as sonoridades do piano e uma electrónica bastante presente e quase "perigosa", com drones e padrões repetitivos. Por vezes é um único acorde que é lançado, a que se junta a pequena orquestra (com excelentes músicos da Orquestra Metropolitana), e que vai alargando e abrindo o som "fechado" da electrónica.

O mais interessante veio nos últimos três números (que não são propriamente "andamentos"): through the vibrant air lançou um som de ar e fogo que abriu a música a novos horizontes e deu sentido aos fumos lançados no ar; other echoes instala finalmente um "quase concerto" para piano, com um jogo orquestral bem diferente, mas quase rarefeito; e no final, com the pattern is movement, uma saída dos instrumentos (brincadeira com uma sinfonia de Haydn?) que faz compreender melhor a intenção artística do que antes se passou.

Não é que seja novo fazer concertos mais íntimos, como aconteceu no palco do grande Grande Auditório, mas é interessante ver como isso propõe, à partida, uma forma de escuta diferente e deixa os espectadores com uma atenção – menos confortável, talvez, mas mais intensa – àquilo que a música faz em palco. E até poderíamos ir mais longe: se os espectadores estão no palco, então eles são assumidamente actores da música, mais calada ou mais ruidosa, mais plácida ou mais inquietante, trazendo memórias de infância ou levando-nos ao ponto mais quieto do mundo que se move. Graças a uma artista chamada Joana Gama, e aos seus cúmplices.