Tacita Dean: “Esta exposição em Serralves vai às minhas raízes”

Dos seus estranhos filmes que cruzam mitologia e história, fenómenos naturais e memórias familiares, até aos trabalhos sobre velhos postais ilustrados ou aos gigantescos desenhos a giz sobre tinta de ardósia, a vagarosa obra de Tacita Dean é uma sublime anomalia poética neste apressado mundo digital.

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A artista inglesa Tacita Dean (n. 1965) está de regresso a Serralves, onde já expusera em 2002, com uma exposição que abarca todo o arco temporal da sua obra, desde os primeiros trabalhos realizados ainda em contexto escolar até ao épico filme Antígona (2018), um projecto que a acompanhou durante décadas, ou ao conjunto Femme à Barbe, realizado já este ano e nunca antes mostrado.

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A artista inglesa Tacita Dean (n. 1965) está de regresso a Serralves, onde já expusera em 2002, com uma exposição que abarca todo o arco temporal da sua obra, desde os primeiros trabalhos realizados ainda em contexto escolar até ao épico filme Antígona (2018), um projecto que a acompanhou durante décadas, ou ao conjunto Femme à Barbe, realizado já este ano e nunca antes mostrado.

A nova exposição, que se inaugura esta terça-feira às 20h00 – e que será precedida de uma conversa com a artista, com a directora interina do museu, Marta Almeida, e com João Fernandes, adjunto do museu Reina Sofía, em Madrid, e responsável pela vinda de Dean a Serralves em 2002 –, coincide com um momento de consagração absoluta desta improvável contemporânea de Damien Hirst ou Tracey Emin, que em 2018 viu a sua obra exposta simultaneamente em três dos principais museus londrinos, numa colaboração sem precedentes entre a Royal Academy, a National Gallery e a National Portrait Gallery.

À primeira vista, pode não haver uma ligação imediatamente óbvia entre, por exemplo, The Story of Beard (1992), um filme de oito minutos que conta a história de uma lojista que coleccionava barbas e reencena o Le Déjeuner sur l’Herbe, de Manet, com a presença suplementar de um conviva barbudo e nu, e o recente The Montafon Letter, produzido no Verão de 2017, uma gigantesca superfície de 7,3 metros de largura por 3,6 metros de altura, pintada a giz sobre tinta de ardósia, que mostra uma montanha austríaca onde uma avalanche sepultou mais de 300 pessoas no século XVII.

Mas na obra de Tacita Dean tudo está ligado, ainda que ela própria por vezes só venha a ter inteira consciência disso retrospectivamente. Na conversa que manteve esta segunda-feira com o PÚBLICO, no espaço onde a exposição (que ficará até Maio) estava a ser montada, começou por falar do ambicioso filme que realizou na Casa de Serralves em 2003, o tríptico Boots, e sem propriamente chegar a sair dele, acabou por chegar a quase todos os trabalhos agora reunidos em Serralves. E fica-se com a impressão de que poderia ter puxado esse fio de intrincadas ligações, obsessões, coincidências, a partir de qualquer outra obra, incluindo o pequeno desenho e colagem Oedipus, Byron, Bootsy, de 1991, um pedaço de papel de 10 por 15 cm que ofereceu em 2004 a Serralves e que representa os três protagonistas do título através dos seus respectivos pés defeituosos (o nome de Édipo quer dizer “pé inchado”, Byron tinha um pé boto, e Bootsy era um amigo da família de Dean que também mancava).

“Esse motivo do pé já aparece também nos Sixteen Blackboards, feitos em 1991 ou 1992, quando eu ainda não tinha artrite”, observa Dean referindo-se a um conjunto de 16 painéis que constituiu a sua tese de mestrado. Tendo em conta que veio a ser diagnosticada com uma forma particularmente agressiva de artrite reumatóide, que a obriga a coxear pronunciadamente, e a impede, por exemplo, de estender um braço, a artista tem dificuldade em acreditar que a presença recorrente de coxos na sua obra, antes mesmo de a sua própria doença se ter declarado, possa ser uma mera coincidência. “Parece que o corpo sabe da doença antes da mente, é muito estranho”, diz.

Também o protagonista do filme Boots, um amigo da família, tinha tido poliomielite e manquejava. Filho de Anthony Steane, vulgo Jack Trevor, um provável rebento ilegítimo do rei Jorge V que se tornou actor do cinema mudo em Berlim nos anos de ascensão do nazismo, Boots, cujo verdadeiro nome era Robert Steane, “ainda conheceu Marlene Dietrich e Greta Garbo”, conta Tacita Dean, acrescentando: “Ele tinha uma bota lindíssima, fabricada de propósito para ele, e era também cego de um olho e usava uma pala, era uma personagem extraordinária”.

O pai de Boots chegou a ser julgado por colaboração com o inimigo, mas o filho trabalhou com os Aliados, tornou-se arquitecto e viveu em França. “Falava três línguas – inglês, alemão e francês – e trazia consigo aquela identidade antiga, testemunha de uma outra era”, diz Dean. E quando, guiada por João Fernandes, a artista visitou a Casa de Serralves e soube que esta ia em breve ser renovada, achou que “tinha de fazer ali um filme” antes de começarem as obras, e pensou imediatamente em Boots. “Para a minha sensibilidade, a casa era lindíssima e achei que Boots poderia improvisar o papel do arquitecto que a desenhara”. Mas como é frequente na obra de Dean, nada correu como esperava para acabar a bater tudo certo.

“Quando o levei à casa, achou-a horrível, recusou ser o arquitecto e assumiu o papel de amante”, explica. “Foi muito estranho, porque não havia argumento nenhum, ele andava por ali com as suas duas bengalas a ressoar no chão e entrou num estado estranho, talvez entusiasmado com as memórias do pai actor e o pensamento do que ele próprio podia ter sido”. Uma estranheza a que se somava o facto de Boots “mudar de personalidade” consoante a língua que falava. “Com o alemão, ficava um pouco empertigado, com o francês mais ponderado, e foi isso que me levou a montar o filme em três línguas”.

O resultado, que agora pode ser revisto em Serralves, é um conjunto de três filmes em 16mm, de 20 minutos cada, que são exibidos simultaneamente em três salas diferentes. Em cada um deles, o protagonista vagueia por diferentes salas da casa e rememora episódios distintos.

Filmar às cegas

Se o coxear de Boots é um elemento de ligação a muitas outras obras da artista, e à sua própria condição física presente, também é apenas um detalhe na complexa rede subterrânea que parece reger a obra de Tacita Dean. Basta pensar que este excêntrico amigo da família é padrinho da sua irmã mais velha, que por sua vez se chama Antígona, título do seu filme mais recente (Antigone, 2018), igualmente exibido em Serralves, e que culmina um projecto que a acompanhou desde o início da carreira, alimentado em partes difíceis de precisar pelo peso biográfico de um nome e pelo seu precoce interesse pela história narrada nas tragédias de Sófocles.

“O inconsciente é muito poderoso naquilo que faço”, observa Tacita Dean a pretexto deste seu filme. “Antigone foi rodado meio às cegas, com máscaras, sem saber exactamente o que estava a filmar: filmei uma parte em Inglaterra, levei a película por revelar para o Illinois, filmei mais, voltei a pôr tudo nas latas e levei-as para o Wyoming, aterrorizada com a ideia de que o tempo pudesse estar nublado porque precisava do Sol, e voltei a filmar”, conta. Só depois de meses a andar com as bobines de película de um lado para o outro é que finalmente as revelou em Los Angeles, onde está radicada há alguns anos com o marido e o filho, trabalhando com a Academia de Hollywood num projecto de preservação de toda a sua obra fílmica.

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Antigone (2018), de Tacita Dean Cortesia da artista; Frith Street Gallery, Londres e Marian Goodman Gallery, Nova Iorque e Paris

O facto de um filme centrado nas tragédias de Sófocles – a ambiciosa ideia inicial de Tacita Dean era explorar o hiato temporal que separa Édipo Rei de Édipo em Colono – ser parcialmente filmado nos Estados Unidos é típico do método de trabalho da artista, que passa por uma espécie de disponibilidade total, uma convicção de que o acaso acabará por recompensar a confiança que nele deposita. “Descobri uma terra no Illinois que se chama Thebes, em pleno território de Trump, numa zona muito pobre, e percebi que a única coisa que aquilo tinha para mostrar era o edifício do tribunal”. Mas não era um tribunal qualquer, fora ali que Lincoln começara a praticar advocacia, uma associação curiosa para um filme que tinha na justiça um dos seus temas cruciais. “E o meu pai era juiz”, lembra ainda Tacita Dean. E quando a artista soube que ia haver um eclipse solar no Wyoming, poucos meses após a tomada de posse de Trump, soube logo que tinha de o ir filmar e que faria todo o sentido incorporá-lo num trabalho que tratava justamente da cegueira, literal e metafórica. 

Dean teve a colaboração da poetisa canadiana Anne Carson, que aparece a ler um poema da sua autoria, e um dos seus consultores foi Stewart Stern (1922-2015), o argumentista do filme Fúria de Viver, de Nicholas Ray, que lhe disse uma coisa que a artista nunca mais esqueceu, e que é dita no filme, pela voz do editor Peter Mayer. “Eu queria saber porque é que Édipo e Antígona tinham demorado tanto a chegar de Tebas a Colono, que não era muito longe, e ele respondeu-me: ‘Sabe porque é que os judeus demoraram tanto a chegar a Canãa? Porque era importante que a geração dos que tinham sido escravos tivesse tempo de morrer, para que pudessem chegar como um povo livre”.

Dean utilizou em Antigone um sistema que tinha desenvolvido para Film, o monumental trabalho que expôs na Turbine Hall da Tate Modern em 2011, e que consiste, muito resumidamente, numa versão muito sofisticada das chamadas “máscaras”, que são colocadas entre a película e a abertura da câmara e protegem uma parte do filme da exposição, permitindo que essa parte seja utilizada mais tarde.

Film, ao mostrar algo impossível de ser feito com recurso a técnicas digitais, fez parte da intensa campanha que a artista lançou para salvaguardar a produção de película. “Criei um amor a este meio, e de repente o mundo estava a dizer que já não precisávamos dele, mas eu precisava, era o meu material, e tornou-se uma grande luta”, recorda. Já em 2006, a artista abordara a ameaça de desaparecimento da película no filme Kodak, rodado numa fábrica francesa da empresa quando esta anunciou que iria abandonar a produção de filme.

Não deixa de ser adequado, de resto, que Tacita Dean privilegie materiais que vão ser descontinuados, como agora se diz, ou de fixação tão precária como o giz, já que boa parte da sua obra trata de singularidades em vias de extinção. “Parece que todas as coisas pelas quais me sinto atraída estão em vias de desaparecer”, reconhece. Uma peça central na sua obra, Disappearance at Sea (1996), inspirada no provável suicídio no mar do navegador amador Donald Crowhurst, confirma esta pulsão, bem como a sua extensa série de retratos de artistas, todos eles filmados em idade avançada, como Merce Cunningham, Claes Oldenburg ou David Hockney, para referir apenas alguns.   

Crowhurst reaparece no monumental T &I (2006), uma fotogravura em 25 partes inspirada na interpretação alquímica do mito de Tristão e Isolda. Esta é uma das peças exposta em Serralves, a par do conjunto de fotogravuras Blind Pan, onde em 2004 eram já inúmeras as referências ao tema de Antígona.  

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T & I, uma fotogravura em 25 partes inspirada no mito de Tristão e Isolda Nelson Garrido

Dean acredita que o conjunto de obras agora reunido no Porto chega a ser demasiado revelador. “Esta exposição em Serralves vai às minhas raízes de um modo que é quase desconfortável para mim”, diz, referindo-se não apenas às suas obras juvenis do início dos anos 90, mas também ao modo como um filme como Antigone mergulha nas zonas mais fundas do seu inconsciente.

Dean trouxe ainda a Serralves uma peça acabada de fazer: Femme à Barbe, um conjunto de 12 postais intervencionados que dialoga directamente com o seu filme de 1992. “Em The Story of Beard usei a barba como símbolo de sabedoria, o que claro, excluía as mulheres, e não quis acreditar na minha sorte quando agora descobri, online, um vendedor holandês que tinha uma colecção de postais de mulheres barbudas…” 

Se o pai da artista não lhe chamou Tacita Dean a pensar em Dea Tacita, a deusa latina do silêncio, foi outro desses acasos que batem certo, porque há nesta obra uma qualidade silenciosa, uma não ostentação, que a distingue das propostas mais provocadoras de muitos dos young british artists seus companheiros de geração. Quando se olha para os enormes painéis a giz expostos em Serralves, The Montafon Letter e Chalk Fall, este já de 2018, sentimo-nos como deve ter-se sentido o viajante sobre o mar de névoa do quadro de Caspar David Friedrich, fitando directamente o sublime. Mas se nos aproximarmos o bastante de Chalk Fall, que mostra a derrocada de uma montanha de calcário, conseguimos ler, branco no branco, um nome e várias datas. “Quando estava a trabalhar nisto, um amigo estava a morrer muito rapidamente com um tumor cerebral, e todos os dias, enquanto ele se manteve vivo, apontei aqui a data”.