“Carmen Miranda foi a primeira apropriadora cultural”

Em Roterdão, Catarina Wallenstein e Felipe Bragança apresentam a meias Tragam-me a Cabeça de Carmen M., uma média-metragem “a quente” que é um elogio da mistura brasileira.

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No princípio está uma mulher deitada na rua, em cima de bananas maduras. Morta? Desmaiada? Doente? Ou apenas a curar a ressaca? Um travesti negro com saltos de plataforma arrasta-a pelas escadas de um prédio decrépito da Lapa carioca acima. Nos primeiros minutos, resume-se o programa de Tragam-me a Cabeça de Carmen M., que reúne o realizador brasileiro Felipe Bragança e a actriz portuguesa Catarina Wallenstein, que teve estreia mundial há pouco mais de uma semana na Mostra de Cinema Brasileiro de Tiradentes e chega agora em estreia internacional ao IFFR em Roterdão: Carmen Miranda caída em desgraça renasce à sombra do multiculturalismo, embora esta Carmen seja uma actriz portuguesa no Rio a preparar um filme sobre a cantora de Tico-tico no Fubá e perdida por entre as exigências do papel.

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No princípio está uma mulher deitada na rua, em cima de bananas maduras. Morta? Desmaiada? Doente? Ou apenas a curar a ressaca? Um travesti negro com saltos de plataforma arrasta-a pelas escadas de um prédio decrépito da Lapa carioca acima. Nos primeiros minutos, resume-se o programa de Tragam-me a Cabeça de Carmen M., que reúne o realizador brasileiro Felipe Bragança e a actriz portuguesa Catarina Wallenstein, que teve estreia mundial há pouco mais de uma semana na Mostra de Cinema Brasileiro de Tiradentes e chega agora em estreia internacional ao IFFR em Roterdão: Carmen Miranda caída em desgraça renasce à sombra do multiculturalismo, embora esta Carmen seja uma actriz portuguesa no Rio a preparar um filme sobre a cantora de Tico-tico no Fubá e perdida por entre as exigências do papel.

Um filme sobre a utopia perdida de um Brasil multicultural, sob a asa protectora de Carmen Miranda (1909-1955), a brasileira nascida em Portugal que se tornou ícone global através de Hollywood antes de morrer no esquecimento e ser recuperada pela geração tropicalista. Faz tudo sentido: uma actriz portuguesa a fingir ser uma brasileira que se criou a si própria, num filme que desafia a lógica bem-pensante da “apropriação cultural”.

Há, aliás, uma gargalhada partilhada entre Felipe e Catarina, no bar da sala Cinerama, em Roterdão, à volta de um "lanchinho" entre filmes: “Fala-se muito da apropriação cultural, mas a primeira apropriadora cultural foi a Carmen,” diz a actriz. “Essa ideia contemporânea que vem das redes sociais, que cada um é uma pessoa só, fechada dentro de uma identidade… É mentira,” completa o realizador. “A ideia da liberdade tem de estar dentro desse atravessamento de mil possibilidades de quem você pode ser todos os dias. O nosso filme é um elogio a uma pessoa que propôs ser atravessada por todas as culturas e construiu um ícone, é um elogio da mistura.”

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Tragam-me a Cabeça de Carmen M. dr

É nesse espírito, aliás, que Tragam-me a Cabeça de Carmen M. é um filme assinado a meias. Felipe Bragança, que conhecemos como colaborador regular de gente do cinema brasileiro como Karim Aïnouz ou Marina Meliande, tem três longas em carteira e está neste momento em finalização de Um Animal Amarelo, co-produção portuguesa (com O Som e a Fúria). Foi nas rodagens deste último, em 2017, que conheceu Catarina Wallenstein: “Nesse filme a Catarina faz uma personagem que, numa cena específica, tinha um momento musical, e decidi que íamos pensar juntos a cena, do mesmo lado da mesa.” A actriz pega na conversa: “Sentámo-nos a escrever uma letra e percebemos que conseguíamos escrever juntos.” Nasceu a vontade de criar um projecto a meias — “Os grandes desafios que me têm sido apresentados são sempre coisas nas quais não penso,” ri-se Catarina. As pessoas desafiam-me e eu aceito. Não é para pensar, é para fazer!”

Tragam-me a Cabeça de Carmen M. , que dura apenas 62 minutos, foi pensado, rodado e terminado em seis meses (entre Maio e Dezembro de 2018). “A vontade do que queríamos fazer no momento foi o que nos levou ao filme,” explica a actriz/co-realizadora. “Não queríamos passar cinco anos a pensar no filme, passar por todo o processo de escrita, de financiamento. Queríamos tentar sermos mais ou menos as mesmas pessoas entre a vontade de fazer o filme e a entrega da cópia final. Foi uma coisa feita expressamente para ser agora.”

Um agora que foi rodado “antes” e terminado “depois” da eleição de Jair Bolsonaro, presente no filme quer através de imagens de paradas das forças armadas quer da própria evocação de Carmen como ícone do tropicalismo multiculturalista dos anos 1960. Um símbolo de uma ideia, de um imaginário brasileiro aberto, alegre, colorido, acolhedor, num Brasil historicamente muito jovem, como explica Felipe. “Somos uma ideia de identidade muito jovem; a criação do imaginário do que o país poderia ser data dos anos 1920, não tem ainda cem anos. Mas como fomos atravessados por uma colonização, numa mistura de portugueses desterrados, índios expulsos da sua terra e negros sequestrados e escravizados, o Brasil passa o tempo inteiro a gerir a busca de uma identidade e uma repulsa pela sua situação. O país é todo feito dessa contradição, o "complexo de vira-lata" como o Nelson Rodrigues falava...” Catarina completa: “A razão pela qual Carmen pode sintetizar o Brasil é por ela ser como o próprio Brasil, super-complexa, sobre a mistura, a contrariedade, a confusão..:” Felipe termina: “Vivemos no reinado do simplismo no Brasil, onde tudo tem que ser preto no branco. Uma das coisas que o espírito da Carmen traz é um elogio dessa complexidade das coisas, a ideia de um lugar utópico em que a confusão pudesse ser um elogio. Um lugar onde a gente gostaria de estar, onde está em movimento e esse movimento nos pode fazer bem.”

O PÚBLICO viajou a convite da Bando à Parte, do IFFR e da Nitrato Filmes