Maduro já perdeu um coronel - até quando garantirá o apoio da cúpula militar?
O representante militar da Venezuela nos EUA declarou apoio a Juan Guaidó, o primeiro sinal público de dissidência no topo da hierarquia militar. Um primeiro sinal de que o apoio militar ao regime não é sólido, ou os alicerces da relação com as Forças Armadas estão para durar?
Foi dado um primeiro sinal público de dissidência no topo da hierarquia militar venezuelana, o aparelho que sustenta o Presidente Nicolás Maduro e o regime chavista. O representante militar da Venezuela nos Estados Unidos, coronel José Luis Silva, deu neste domingo o seu apoio a Juan Guaidó, o líder do parlamento que na semana passada se proclamou chefe de Estado interino e quer marcar eleições.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Foi dado um primeiro sinal público de dissidência no topo da hierarquia militar venezuelana, o aparelho que sustenta o Presidente Nicolás Maduro e o regime chavista. O representante militar da Venezuela nos Estados Unidos, coronel José Luis Silva, deu neste domingo o seu apoio a Juan Guaidó, o líder do parlamento que na semana passada se proclamou chefe de Estado interino e quer marcar eleições.
Em declarações ao diário norte-americano Miami Herald, o coronel venezuelano afirmou que “já basta”. “Deixem de lado o controlo ilegal do nosso território e do poder executivo. Os líderes converteram-se em multimilionários à custa do povo”, acrescentou, numa mensagem dirigida à cúpula militar da Venezuela.
Depois destas declarações, foi divulgado um vídeo, filmado na embaixada venezuelana em Washington, onde José Luis Silva apela directamente aos militares: “Dirijo-me ao povo da Venezuela e em especial aos meus irmãos das Forças Armadas com a finalidade de reconhecerem como único presidente legítimo Juan Guaidó”.
“As Forças Armadas têm um papel fundamental na restauração da democracia no nosso país. Por favor, irmãos, não ataquem o nosso povo, o Estado deu-nos as armas para defender o nosso país, não para atacar os nossos compatriotas”, acrescentou.
Guaidó recebeu largo um apoio internacional, dos Estados Unidos à União Europeia, que deu um ultimato a Maduro, para marcar eleições "nos próximos dias", caso contrário reconhecem o Presidente interino. Tomadas de posição que encheram o balão de oxigénio da oposição a Nicolás Maduro. Mas, sem o apoio da cúpula militar, dizem os analistas, é pouco perceptível como poderá o salto em frente do líder da Assembleia Nacional passar das palavras para uma mudança política real. A questão, neste momento, é saber se a lealdade dos militares é suficiente para segurar o regime chavista que Hugo Chávez inaugurou há quase 20 anos.
Guaidó tem multiplicado os apelos às Forças Armadas no sentido de se juntarem ao seu desafio a Maduro e serem convocadas eleições que sejam reconhecidas como democráticas. Neste domingo, nas ruas de Caracas, apoiantes da oposição estiveram a distribuir panfletos com a cópia da lei da amnistia que Guaidó prometeu oferecer aos responsáveis do regime que se afastem de Maduro.
Ambas as partes já afirmaram que querem evitar um conflito a todo o custo. Porém, as manifestações contra Maduro não cessam e enchem as ruas em várias cidades venezuelanas, aumentando também a pressão sobre os militares.
Na quinta-feira, dia seguinte à auto-proclamação de Guaidó, Vladimir Padriño, ministro da Defesa e general de quatro estrelas, reafirmou publicamente a lealdade das Forças Armadas ao regime. Porém, nos últimos tempos, surgiram focos de oposição a Maduro no seio dos militares. E, desde que chegou ao poder, por morte de Chávez , o sucessor não tem medido esforços para manter os militares do seu lado.
O primeiro sinal evidente de que existe dissidência dentro das forças de segurança surgiu em 2017. Um grupo da polícia venezuelana roubou um helicóptero e atacou com tiros e granadas o Ministério do Interior e o Supremo Tribunal de Justiça, composto por juízes alinhados com o chavismo e que susteve Maduro nos vários conflitos institucionais (quando esvaziou os poderes da Assembleia Nacional de maioria da oposição e a substituiu por uma Assembleia Constituinte de maioria chavista, por exemplo).
Óscar Pérez, antigo agente da polícia e líder deste grupo, foi morto numa operação policial, depois de ter estado dias foragido.
Há uma semana, um grupo de militares foi detido num quartel na capital, Caracas, depois de tentar apropriar-se de armas. Exigiam a queda de Maduro. Para além do baixo número de envolvidos, este grupo era constituído por baixas patentes.
Mas como tem conseguido Maduro manter a lealdade da Força Armada Nacional Bolivariana? São várias as ferramentas: a primeira delas, a repressão. Segundo um relatório da organização não-governamental Justiça Venezuelana, em 2018 foram detidos 60 militares, número sem precedentes e que indica a preocupação crescente no interior do regime. O jornal venezuelano El Nacional, na contabilidade feita pela jornalista Sebastiana Barráez, diz que este número é superior, ascende a 82 militares detidos. São todos suspeitos de fazerem parte de uma conspiração contra o Governo, e as detenções foram feitas de forma discreta.
O mesmo jornal diz que o coronel do Exército na reserva Teodoro Campos calcula que pelo menos 185 oficiais estão a ser investigados, sendo submetidos a pressões e interrogatórios frequentes.
Depois, há a arma financeira. Os quadros militares são beneficiados em comparação com o resto da população. Se um médico, em média, recebe o salário mínimo de 1800 bolívares forte (menos de oito euros) – em 2008, o bolívar foi submetido a um reajustamento cambial e passou a ser chamado de bolívar forte; é hoje a moeda com a maior inflação do mundo, pelo que a conversação pode variar rapidamente –, um militar de baixa patente recebe quase o dobro: cerca de 3160 bolívares.
Apesar da profunda crise económica, social e humanitária, a Venezuela tem um dos mais poderosos exércitos do continente sul-americano. Segundo a organização não-governamental Transparência Venezuela, em 2018, o orçamento militar foi 17 vezes superior ao do Ministério da Agricultura, e 35% maior do que o do Ministério da Educação.
Desde que chegou ao poder, em 2013, Maduro fez, ainda que discretamente, do reforço militar e das forças de segurança uma das suas prioridades. De acordo com um relatório da organização Controlo Cidadão, especializada na relação entre o poder político e militar, o Presidente venezuelano apostou forte no reforço das estruturas da Guarda Nacional e da Guarda de Honra Presidencial – responsável pela segurança directa do chefe de Estado.
Esse reforço foi mais intenso desde que, em 2014, os protestos nas ruas da Venezuela subiram de tom – “A Guarda Nacional aumentou a sua presença em todo o território ao passar de 73 destacamentos para 236, e de 159 companhias para 514”, diz o relatório, citado pelo El Nacional. Parte dos rendimentos do petróleo são canalizadas para este sector.
A terceira ferramenta é uma genuína lealdade dos altos quadros militares ao regime inaugurado por Hugo Chávez, figura idolatrada no seio das forças de segurança. Existe também um forte sentimento anti-americano, próprio da ideologia bolivariana inspirada por figuras como Che Guevara ou Fidel Castro e alimentado pelas sanções que Washington impôs nos últimos tempos ao regime e a algumas personalidades directamente, algumas delas militares.
Que poder terá a campanha de Guaidó para abalar os alicerces da relação entre o Governo venezuelano e a cúpula militar? É mais uma das incógnitas no tabuleiro venezuelano.