O espelho e o manto: como pensar hoje os museus?
Estaríamos assim tão equivocados se considerássemos os museus espaços de educação informal, que pudessem precisamente conjugar o divertimento com a aprendizagem e a ciência?
O modelo Zugaza
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O modelo Zugaza
A 17 de Maio de 2016, o destacado jornal online espanhol conhecido precisamente pelo nome de El Español publicou entrevistas a vários diretores de museus e especialistas em museologia do país vizinho. O motivo destas entrevistas prendia-se com o facto de se comemorar o Dia Internacional dos Museus no dia seguinte. As visões dos entrevistados eram de tal modo díspares que o título escolhido pelos jornalistas foi precisamente “Lejos del museo ideal”, que podemos traduzir como: longe do museu ideal. De entre os entrevistados, destaco Miguel Zugaza que, na altura, era ainda diretor do Museo del Prado. Na entrevista, o historiador de arte defendia que os museus, tal como a generalidade das instituições culturais, devem ser profissionalizados e não andarem ao sabor dos interesses partidários. Zugaza sabe do que fala ou não tivesse ele “aguentado” no Prado devido a um pacto de regime entre o PP e o PSOE que viria a “modernizar” o funcionamento do referido museu ainda em tempos de José Maria Aznar. O mesmo Zugaza acrescentaria que “aquilo que de bom foi feito no Prado deveu-se à profissionalização do museu”. Mas o que significa, para Zugaza, profissionalizar o museu? Depreendemos, através das suas palavras, que profissionalizar significa que o critério aplicado deve advir da qualidade das coleções, da expografia e do trabalho de investigação dos técnicos/investigadores do museu. Com isto dá a entender que a qualidade de uma exposição não deveria apenas ser medida pelo número de visitantes, mas sim por um conjunto amplo de fatores, entre os quais, obviamente, também se encontra o número de pessoas que visitam a exposição. Zugaza é um conhecido defensor da gratuitidade dos museus nacionais. Mas será que entradas gratuitas por si só “equilibram” e tornam mais “justa” a relação da qualidade expositiva com receitas?
Sem resposta aos autómatas
Em Setembro, escrevi um texto de opinião, para este mesmo jornal, no qual destacava o comunicado do ICOM Portugal, de 27 de julho de 2018, referente ao projeto de decreto-lei do novo regime de gestão dos museus. No referido texto destacava algumas das propostas que, em meu entender, potenciavam os museus; usei, para isso, uma analogia com a figura de Odradek – um ser autómata criado por Kafka – como exemplo do panorama atual dos museus portugueses e da tendência para a mecanização: mecanização de procedimentos, de atividades, de exposições, etc. Ao trazer Odradek à colação, falava essencialmente de receitas, que crescem, e falava de conteúdos, que faltam. Resumindo: sem pessoas não há museus. Zugaza sabe bem que o êxito dos museus advém essencialmente da qualidade das coleções e também da competência profissional das pessoas que trabalham no museu; não de iniciativas fugazes e espetaculares que tanto podem resultar em sucessos como em falhanços rotundos. Os museus precisam de ser consistentes, mas para serem consistentes precisam de diretores e técnicos que percebam o que é trabalhar num museu, trabalhar com o património e com a patrimonialização. Zugaza, aliás, não surgiu do nada, a sua carreira (e vida, uma vez que é filho de Leopoldo Zugaza) é toda ela feita em museus, alguns pequenos, outros maiores, umas vezes como técnico, outras como diretor. Estar ligado aos museus toda uma vida não é, por certo, um requisito fundamental, contudo, não seria descabido pensar que para a profissionalização é necessário estar por dentro do assunto... perceber as particularidades da gestão cultural e conhecer a dinâmica funcional de um museu. Será possível adquirir todo este saber específico, estando fora de um museu?
Já dizia Franz Boas…
Mas o que é realmente um museu? A meu ver, os princípios fundamentais da administração do museu já foram identificados, há mais de um século, pelo antropólogo Franz Boas num texto publicado, em 1907, na revista Science. Segundo o antropólogo germano-americano, os museus servem sobretudo três funções: divertimento, educação e promoção da investigação. Curiosamente, os mesmos princípios que ainda hoje caracterizam o museu, segundo a definição do ICOM de 2007: “O museu é uma instituição permanente sem fins lucrativos, ao serviço da sociedade e do seu desenvolvimento, aberta ao público, que adquire, conserva, investiga, comunica e expõe o património material e imaterial da humanidade e do seu meio envolvente com fins de educação, estudo e deleite”.
A conciliação destes três fins não é tarefa fácil: o mesmo Boas se questionava, no século passado, sobre “qual seria o melhor método para tornar as coleções acessíveis ao público e ao mesmo tempo úteis para o avanço da ciência”, respondendo que o museu deveria ser como – se desejava que fosse – a universidade: capaz de transmitir a ciência para o grande público. Estaríamos assim tão equivocados se considerássemos os museus espaços de educação informal, que pudessem precisamente conjugar o divertimento com a aprendizagem e a ciência?
O espelho e o manto
Fernando Pérez Oyarzun, arquiteto chileno – professor visitante em Cambridge e Harvard – e atual diretor do Museo Nacional de Bellas Artes do Chile, usou uma interessante analogia para explicar a arquitetura enquanto relação com o corpo humano, usando os termos espelho e manto para a caracterizar. Em ambos os casos, como indica Pérez, “a perceção do nosso corpo pressupõe, desde a origem, uma dupla distância de compreensão”. Essa perceção pode, precisamente, estar assente em dois polos fundamentais quando relacionados com um objeto exterior: o espelho, no qual o edifício aparece à nossa frente como um outro, um outro que aspira, simultaneamente, à equivalência e à autonomia; e o manto, que nos cobre, envolve e protege, representando a vida e o final: uma roupa ou um sarcófago.
Quando estamos na presença de um museu, estamos perante esses dois polos de compreensão: o espelho, que projeta a nossa humanidade e que nos permite ver, do outro lado, todas as nossas possibilidades enquanto seres humanos, aquelas obras belíssimas, aquilo que fomos no passado, e o manto, que nos envolve, que nos guia e permite orientarmo-nos na visão presente que temos do passado e do futuro. Por esse motivo, os museus são valiosos, são-no enquanto espaços de reflexão e aproximação à narrativa humana, mas também enquanto locais de orientação da identidade. Merecem por isso ser pensados, merecem mais do que uma regularização e do que um mimetismo num código... num NIF. A aspiração à autonomia é legítima, mas nem todos temos, lutamos ou criamos condições para a ter. Alguns deixam-se arrebatar pelo espelho, outros apenas procuram o manto, mas, para que esta seja conseguida, são precisos os dois: o espelho e o manto.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico