Alceste, ou Ana Quintans: de pé descalço, uma estrela
A soprano portuguesa afirma-se como uma estrela maior neste regresso do encenador Graham Vick ao Teatro Nacional de São Carlos, depois da sua arriscada Tetralogia de Wagner.
Graham Vick regressou a São Carlos, após a sua arriscada e original Tetralogia de Wagner, para encenar a ópera Alceste, de Gluck, pela primeira vez em Lisboa na sua versão francesa. O nosso teatro nacional de ópera continua subaproveitado, por falta de fundos para produção; contudo, Vick foi lesto em transformar problemas institucionais em oportunidades artísticas.
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Graham Vick regressou a São Carlos, após a sua arriscada e original Tetralogia de Wagner, para encenar a ópera Alceste, de Gluck, pela primeira vez em Lisboa na sua versão francesa. O nosso teatro nacional de ópera continua subaproveitado, por falta de fundos para produção; contudo, Vick foi lesto em transformar problemas institucionais em oportunidades artísticas.
Que fazer com pouco dinheiro para cenários, um palco vazio durante meses e coralistas disponíveis? Ocupar o palco com cantores; pô-los a andar de um lado para o outro; dar-lhes umas cadeiras e uns balões; ver o que dá, e tentar de novo; e, já agora, ensiná-los a dançar? Sim e não: o que Vick fez, com a ajuda da coreografia de Ron Howell, dos figurinos de Connor Murphy e das luzes de Giuseppe Di Iorio, foi explorar e valorizar a capacidade expressiva do coro, que faz um trabalho formidável, e dos artistas convidados, na sua maior parte portugueses; e, usando a tribuna presidencial, o corredor central e um acesso ao palco sobre o fosso, construir um espectáculo visualmente movimentado, colorido ou em claro-escuro, que apaga, conscientemente, as marcas da distinção social, trate-se embora de um rei e seus súbditos, de uma rainha e do seu povo — unidos não só no sentimento mas também na proximidade com os filhos, no despojamento, no pé descalço.
Falta dizer que tudo isto não teria sido possível sem a aposta na soprano Ana Quintans como protagonista. Com um papel de grande exigência técnica e dramática, Quintans afirma-se aqui como uma estrela maior. A ópera roda em seu torno; e a sua presença é tão intensa que consegue preencher sozinha, durante minutos, um palco enorme literalmente vazio. A sua voz, macia e homogénea, tão ágil quão penetrante, permite-se agudos delicadamente emitidos e médios redondos e possantes, e isto apesar de o diapasão usado não lhe ser favorável. O seu estilo, moldado pelo rigor da música barroca, valoriza a clareza da dicção, limita o uso do vibrato e permite que a fluidez ornamental acresça ao poder retórico, em vez de se lhe opor.
A inteligência artística, o talento de actriz e a graciosidade corporal, cénica e coreograficamente explorada, perfazem as qualidades que a tornaram na intérprete ideal de Alceste. Encontrou um bom parceiro no tenor Leonardo Cortellazzi, no papel do rei; de escola vocal italiana, a voz empostada para emissão fácil de um belo timbre, Cortellazzi evidenciou entrega dramática e uma presença de palco amplamente convincentes. O barítono Alexandre Duhamel (Sumo Sacerdote, Hércules), mais pesado, não deixou por isso de criar um excelente contraponto com os papéis principais. Se o tenor Fernando Guimarães (Évandre), vindo da música antiga, se ressentiu da acústica da cena, que não deixa passar certas subtilezas de dinâmica e articulação de que se pode tirar partido em salas mais pequenas, já a eficácia de João Fernandes (Arauto, Apolo), de Christian Luján (Oráculo, Deus dos Infernos) e dos colegas que formaram o Coro dos Corifeus (Raquel Alão, Ana Ferro, João Cipriano e Nuno Dias) esteve acima de qualquer dúvida.
Mas voltemos à encenação: a ideia de despojar a ópera da sua época de referência (a Antiguidade clássica) a favor da contemporaneidade é defensável, porque os fenómenos humanos não mudaram de natureza, mas de aspecto, e um aspecto familiar ajuda a identificação emocional entre público e personagens; embora possa introduzir uma dissonância de registo, apresentar Hércules como uma espécie de Super-Homem de banda desenhada faz algum sentido. É mais chocante que ele apareça bêbado, de garrafa na mão; contudo, a garrafa terá mais adiante um papel importante na composição da disputa final entre o rei e Alceste. Também os sacerdotes e os deuses se cristianizam (Apolo acaba por surgir como Cristo), e os crentes se transformam numa assembleia de evangélicos carismáticos, desdobrados em convulsões e em exorcismos, como nas epilepsias e possessões divinas de tempos arcaicos. Talvez Vick se tenha excedido ao encenar um parto público, o parto das vestes oraculares: é um momento violento, mas o oráculo traz uma violência ainda maior, que se repercute pela ópera inteira. A mistura de cantores e bailarinos é, nesta cena, gerida de forma magistral; em muitas outras cenas, como na apoteose final — coreografia serpenteante, festivamente marcada pelos balões amarelos, que se segue à tocante e delicada dança do casal real —, esta interacção está também muito presente.
O momento culminante desta obra eminentemente teatral é o momento da travessia na terra-de-ninguém, entre vida e morte, em direcção à porta dos Infernos. Ana Quintans surge sozinha, ao fundo, e aproxima-se paulatinamente da boca de cena. A música, dirigida por Graeme Jenkins com grande mestria, tirando o melhor partido da orquestra e superando (a não ser no início do segundo acto) as dificuldades postas pela distância a que se encontram os coralistas, ocupa todo o espaço. Música que ao longo de todo o espectáculo não chama a atenção para si própria, mas para a vivência emocional, veiculando e colorindo o significado do texto de modo a agarrar o ouvinte a cada passo; e que só às vezes, sem prejuízo da sequência dramática, se permite uma elegante deriva dançante. Gluck levou realmente a sério a reaproximação da ópera à sua matriz original, acentuando a sua continuidade e a sua pertinência teatral, e fê-lo com génio. Não foi só Alceste a ser, enfim, resgatada da morte, para encantar rei e povo: é Gluck que, por sua vez, Alceste agora resgata, para a todos comover.